Catedral de Notre Dame (Nossa Senhora) Paris-França
O DIVINO ESPOLIO DE FREDERICO OZANAM
O
maior mérito do homem perante Deus, como sabemos
é o cumprimento do fim para que fora criado.
Esse cumprimento, entretanto, pode coincidir com o
tempo em que o católico prevê o término da existência premunindo os interesses
espirituais para efeitos póstumos.
Compõe, então, a memória da sua vida ou a manifestação
da sua última vontade, a que dá o nome de Testamento. Mas, nesse testamento, a
harmoniosa consciência de Deus, não há de perder de vista a Eternidade!
Ora, ANTÔNIO FREDERICO OZANAM que soube ser o emérito
catedrático da Sorbonne, era o Apologista consagrado, no dia em que completara
40 anos de idade, aos 23 de abril de 1853, achando-se gravemente enfermo, na
cidade de Piza, redigira o seu Testamento sob a inspiração de Nosso Senhor
Jesus Cristo, invocado nas Três Pessoas da Santíssima Trindade.
O Professor, Doutor João Pedreira Duprat no-lo
apresenta, em magnífico extrato, na última página do 2º. volume das "Cartas de Ozanam" que, do original,
esse ilustre confrade vicentino, acabara de traduzir com fidelidade, vernaculismo,
elegância e amor inexcedíveis.
É com a mais alta ascensão espiritual santificadora dos
pensamentos na fronte, dos sentimentos no coração e da resistência no peito -
que Frederico Ozanam, no alvorecer daquele seu aniversário natalício, em
sequência à sua ação de Graças, grafa, numa alva lauda, em caracteres nítidos e
firmes, de seu próprio punho, as suas resoluções de última vontade -
iniciando-as com a sintonia característica das orações perfeitas, a persignação
sinaleira do fiel cristão:
"Em
nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo".
Nesse continuísmo de forma e espírito, o eminente
testador francamente, como um santo que era, passa a derramar no seio daquela
página íntima, o mel que flui suavemente de sua alma adamantina. E, assim,
afirma:
"No
dia de hoje - 23 de abril de 1853 - no momento em que completo meu quadragésimo
aniversário, preso das inquietações de grave moléstia, sofredor no corpo mais
do que no espírito, escrevi em poucas palavras minhas últimas vontades, propondo-me
exprimi-las mais amplamente quando tiver mais força".
E, deste introito, passa Ozanam a fazer a sua Profissão de Fé:
"Entrego
minha alma a Cristo, meu Salvador”.
É esta ao mesmo tempo, intuição de seu estado e uma
vibração de que, em sua vida, espiritual, já atingira Ozanam aquele grau
unitivo pelo qual a outorga da alma, a entrega do coração, é plena, é total à
vontade santíssima de Deus!
Nem pode haver maior prova de submissão e amor!
A seguir, com a alma de joelhos diante do Senhor, dá a
prova da sua santa humildade externando de como eram profundos os seus
sentimentos à lembrança de situações passadas que o aterravam, perturbavam e
deprimiam. Todavia, na confiança que lhe merecia a infinita misericórdia,
aquela treva que o abatia, espairecia-se, dissipava-se, para raiar na sua
consciência a esplendente aurora de reabilitação espiritual - antecâmara da
Eternidade!
E, naquele mar encapelado de pensamentos, sobreveio, uma
ancora firmadora. É o tópico:
"Morro
no seio da Igreja Católica, Apostólica Romana".
"Conheci
as dúvidas do século presente. Toda a minha vida, porém, levou-me à convicção
de que não existe repouso para o espírito e o coração a não ser na fé da Igreja
e na sujeição à sua autoridade".
Revelação de como era segura a sua formação espiritual
e embasado o seu conhecimento experimental da nossa doutrina.
*
* *
E continua, Ozanam:
"Se,
algum valor empresto a meus longos estudos, é porque me outorgam o direito de
suplicar a todos aqueles que eu amo, que se conservem fiéis a uma religião na
qual encontrei a luz e a paz".
*
* *
Transparece como sentimos, neste seu louvor à nossa santa
religião, o culto à verdade e, ao mesmo tempo, a nobre gratidão de Ozanam a
Nosso Senhor.
E prossegue, agora, a parte culminante do testamento,
no que tange à Família:
"Minha
prece suprema à minha esposa, à minha filha, a meu Irmão e cunhado e a todos
que deles nasceram, é que perseverem na fé, não obstante as humilhações, os
escândalos, e as deserções de que serão testemunhas".
"À
minha terna esposa que constituiu a alegria e encanto de minha vida, e cujos
meigos cuidados, durante um ano, amenizaram todos os meus males, dirijo um
adeus breve como todas as coisas da terra".
"A
ela minha gratidão e minha bênção".
"Somente
no Céu, onde a espero, poderei render-lhe todo o amor que merece".
*
* *
Impressiva epopeia de sentimento é a delicadeza do coração
de Ozanam, coração de esposo, para quem, como declara, não foi bastante amar a
esposa na terra, mas amá-la também no Céu!... E amá-la, portanto, assim... esplendorosamente melhor!
E, ainda, de coração aberto ao afeto do lar, manifesta:
"À
minha filha lanço a bênção dos Patriarcas - em Nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo”.
"É
bem triste para mim, não poder consagrar-me por mais tempo à obra de sua
educação”.
"Confio-a,
porém, sem amargura, à sua virtuosa e tão querida Mãe".
*
* *
E pode-se aquilatar com que esmero Ozanam - autodidata
da juventude no seu século, - não haveria de plasmar a inteligência, o caráter
e o coração de sua filha, mimoso rebento de sua piedosa estirpe!
E ainda, nesta antevisão de não poder assisti-la, aprimorá-la
a seu molde, teve a sabedoria de, conformado, atribuir à sua esposa, aquela
árdua missão convencido de que, quem educa uma filha, não só prepara uma Mãe,
uma Mestre, uma Instituição, como principalmente, cria uma Pátria! ...
Aproximando-se o final do Testamento, Ozanam, depois
de se referir aos seus demais parentes, notadamente à sua virtuosa progenitora,
inclina-se a agradecer os serviços que recebera de todos e diz, em inequívoca
humildade:
"Peço
perdão das minhas vivacidades e dos meus maus exemplos".
E assim refere quando se fossemos a cotejar o arsenal de
suas boas obras, essas vivacidades e esses exemplos que aí menciona,
desapareceriam largamente compensados. Entretanto a modéstia do grande apóstolo
o conduz a atribuir-se deste modo humilde como o fazem os santos.
O fecho do testamento concentra o petitório de
sufrágios por sua alma:
"Solicito
as preces de todos os meus, da Sociedade São Vicente de Paulo, dos meus amigos
de Lyon".
E, neste fim, Ozanam adverte:
"Não
vos deixeis amortecer por aqueles que vos disseram: "Ele está na
Céu".
"Orai
sempre por aquele que tanto vos ama mas que muito pecou".
"Apoiado em
vossas preces, meus caros e bons amigos, deixarei a terra com menor
temor".
"Espero
firmemente que não nos separemos e que ficarei convosco até virdes a mim".
"Que
sobre vós todos permaneça a bênção do Pai, do Filho e do Espírito Santo".
Eis, caros confrades, a que transcendência se alça o
sentimento e a Fé ardente do grande homem de Deus que fora Antônio Frederico Ozanam.
É notável de como o seu cristianismo o alentava, dando-lhe
as resistências de um fortim humano vocacionado à vontade divina.
Enquanto o vulgo se deixa dominar pelo desânimo, Ozanam
dá testemunho de Cristo, acastelando-se no sofrimento para, dele, elevar-se em
voo de anjo, em arrebatamento de justo, à Bem.aventurança Eterna!
Bem se vê caros Confrades, que Ozanam era pobre porque
por mais que se procure não se acha o espólio de que ele dispusesse; mas bem se
entenda - espólio de bens materiais, espólio no sentido jurídico; espólio,
patrimônio temporal ; espólio consistente em coisas; espólio em bens do mundo.
Sim, assim era Ozanam, pobre dos bens do mundo;
todavia, não o era da Verdade como, em recente conferência aqui proferida sobre:
"Ozanam Apóstolo da Verdade", no-lo demonstrou o vigoroso orador, o
ilustre confrade Dr. Menezes.
Da Verdade! ... Ozanam era rico. Era rico, com Nosso Senhor
Jesus Cristo, como São Jerônimo dizia: "aquele que é pobre com Nosso
Senhor Jesus Cristo é soberanamente rico".
Seu Testamento é um Testamento de Amor! Nele se
encontra um incitamento para mais fortificar os clarões da Fé! Nele se percebem todos os ires da Esperança pelo Bem Supremo!
Nele se anteveem os lampejantes ardores da Caridade!
Seu Espólio "As Conferências Vicentinas", na
trajetória luminosa de sua vida, configura o esplendor de um sol fecundante
que, não só afortunou a terra com o fruto dos socorros de todo o gênero, como
ainda alindou o Céu com as flores de almas conversas.
Esses frutos, essas flores, prezados Confrades, são os
que concretizam "O DIVINO ESPÓLIO DE FREDERICO OZANAM".
SÃO OS SEUS
POBRES. - Os seus pobres, aquela falange de criaturas de Deus para as quais,
sob a égide ascética do ínclito SÃO VICENTE DE PAULO, Ozanam deixou nas
"CONFERÊNCIAS VICENTINAS" o caminho aplainado para a grande caridade
benévola e reabilitadora, dinâmica e compreensiva, entusiástica e ideal!
A imensa onda, a maré montante dos deserdados,
famintos, maltrapilhos, desajustados, paraplégicos e indigentes, para os quais
Ozanam abnegadamente, sob a quintessência da ternura, para alívio das suas
misérias e mazelas espirituais e corporais legou a portentosa escola que dilata
o coração católico, tomando-o, como é o do Vicentino: largo, aberto,
complacente e grande!
O Divino espólio de Frederico Ozanam está na magistral
lição de virtude, da qual os Confrades Vicentinos, como escolhidos de Deus,
devem revestir-se e agir de: mãos de benfazejos; palavra de apóstolo; olhar de
ternura e, entranhas, de misericórdia!
E cada confrade Vicentino deve, por isso, ser uma
espécie de sentinela Vigilante, um similar de Promotor de Resíduos, na estacada
do posto como legítimo exator do
Testamento de Ozanam e como destemido conservador do seu divino Espólio!
É divino, o espólio de Frederico 'Ozanam, como nos propomos
considerar porque, concretizando-se nos pobres, personalizou, direta e expressivamente,
as criaturas sobre as quais exatamente Deus tem mais predileção: aqueles sobre
as quais seus olhos vivem projetados, contemplando-os com as graças dos Seus
eleitos - eleitos de Seu Coração.
O divino Espólio de Frederico Ozanam está contido na pobre
humanidade!
E já, si bem nos lembramos, o inspirado Castro Alves, proclamará
na sua expressão poética à juventude do seu tempo, a máxima:
"Quem
dá aos pobres, empresta a Deus".
Mas, meus caríssimos confrades, mais do que isso: "Quem
dá aos pobres, Deus retribui com cem por um; e, ainda (ó riqueza das fortunas -
Ó albores divinos!) _ o Reino dos Céus! ..."
Com efeito, os pobres nunca foram esquecidos de Deus,
pois no Sermão da Montanha Nosso Senhor não os olvidou na sua predileção. E tão
grande, tão superlativa foi a preferência de Nosso Senhor Jesus Cristo pelos
pobres que Ele próprio o quis ser.
Donde decorre a nobreza heráldica do pobre!
E, o salmo 9, bem nos alerta: "O Senhor fez-se o
refúgio do pobre".
Dizia São Vicente de Paulo:
"Convém amar os pobres com afeto todo especial, vendo
neles a pessoa mesma de Cristo".
São Lourenço Justiniani nos assegurava que:
"Os pobres são os porteiros do Paraíso. Quem
quiser entrar no Céu, compre antes a amizade destes porteiros".
E o nosso Pai São Francisco, criou a pobreza franciscana,
a altíssima pobreza, lembrando a que se personificava no próprio Filho de Deus,
em cuja situação a pobreza veste-se da alegria, orna-se de encanto, estremece
de límpido gozo, pois não há nem pode haver na terra, nem maior riqueza, nem
mais vistosa conquista.
Aos seus filhos espirituais dizia o nosso Pai Seráfico:
"A pobreza é o único meio que temos para dar alguma coisa a Deus".
E, finalmente, Mons. Ruch adverte:
"Lembremo-nos de que o Evangelho parece composto
todo ele para atestar a iminente dignidade dos pobres."
Aqui tendes,
Prezados Confrades, em pálida cópia fiel, as impressões e considerações que o
DIVINO ESPÓLIO DE FREDERICO OZANAM nos decalca na consciência e que, por isso,
o ciclo vital do grande homem de Deus, não poderia, no encerramento de sua
existência terrena ter maior, nem menor, chave de ouro moral!
Mas o cristão, sabeis, não tem espólio. Assim: "O
DIVINO ESPÓLIO DE FREDERICO OZANAM" não era dele. Era da Igreja. Era da
Igreja porque era a Verdade! A Fé! A Esperança! E, a Caridade!
Essa uma das glórias que ornam a sua fronte onde vemos
uma tríplice auréola característica do Herói - porque enfrentara, no tempo, as
paixões, subjugando-as e vencendo-as;
- - do Sábio - porque sua ciência se acumulara
na Fé infalível;
e do Poeta - porque seu coração, harpa de Sião, vibrara ante
a beleza divina espalhada nas criaturas! Principalmente as de pobreza oculta,
introspectiva e envergonhada!
Com a vizinhança da morte não há quem não perceba a sua
condição de miséria, ainda quando foi a vida trabalhosa na prática das
virtudes.
Não há quem não sinta as mãos vazias para a viagem da Eternidade.
Mas toda a nossa riqueza se funda na infinita misericórdia de Deus.
De modo que o Testamento de um Cristão confortado com a
sua confiança em Deus há de ser este:
"MISERICÓRDIA IN AETERNUM
CANTABO".
VASCO DA GAMA PAIVA
25-7-1958
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