5.
Carta de Frederico Ozanam a Teófilo Foisset.
Paris,
21 de março de 1843
Senhor
e caro amigo.
Inspirastes-me
sempre esta afeição respeitosa que se sente por um irmão mais velho, e os
amáveis encontros no ano passado nada mais fizeram que avivar sentimentos desde
há muito em mim nascidos.
Habituastes-me
a uma confiança sem reservas. Apenas uma censura me fez: a de usar para
convosco de uma discrição que se vos afigurava ser frieza, enquanto não passava
da compreensão de minha inferioridade. Perdoar-me-eis, porém, eu o espero, se,
francamente, vos venho exprimir minha inquietação a propósito de um assunto
sobre o qual é considerável a vossa influência: quero falar-vos a respeito do
"Correspondant".
Quando,
por ocasião de vossa tão curta passagem, culminaram vossas caridosas instâncias
com a fundação desse jornal, ficou estabelecido que um órgão, prudente e moderado, fazia falta à causa católica no meio das violências da polêmica
quotidiana.
Fomos
de parecer que essa crítica pessoal e agressiva de que usava o Univers em
relação à Universidade atrasava as questões em lugar de apressar-lhes a solução
favorável, e que, em geral, a discussão, travada entre a fé de um lado e a
filosofia de outro, não se mantinha no verdadeiro terreno. Propusemos, então,
tratando de diversos pontos relacionados com a arte, a literatura e a ciência,
de maneira conscienciosa e cristã, refazer, se possível, idéias defeituosas,
servindo a religião pela pesquisa da verdade antes do que pela invectiva contra
o erro. Vosso excelente artigo sobre Port-Royal, afigurou-se-me um exemplo
dessa controvérsia judiciosa, sólida e benevolente de que os próprios
adversários nos fariam honra.
Devo,
contudo, confessar-vos quão penoso é para mim que, por singular fatalidade, os
três primeiros números de uma revista anunciada e esperada para imprimir às
letras cristãs melhor diretriz, estejam impregnados do mesmo espírito de
hostilidade sistemática e ardente contra a Universidade, o que condenáveis, há
apenas onze meses, pela imprensa.
Outra
consideração ainda a submeter à vossa caridosa apreciação. A redação do Correspondant conta com certo número de membros da Universidade. Representam
eles essa numerosa minoria do corpo Universitário que pertence por sua fé, suas
obras e trabalhos à Igreja, nossa mãe comum.
Penoso
é para eles encontrar-se, a cada instante, envolvidos pela injusta generalidade
de um anátema sem reserva, que os coloca em difícil situação. Entendemo-nos:
não se trata aqui de covardia, de fraqueza ou de respeito humano, mas sim de
conveniências hierárquicas. Assim como não vos seria possível concorrer para a
redação de um artigo que diariamente atacasse em suas incontestáveis misérias a
magistratura a que pertenceis, é também contrária a toda noção de ordem, decoro
e honra que nós, revestidos do ministério do ensino, nos prestássemos a um
trabalho cujo objetivo constante seria desconsiderar em seus chefes ou em sua
organização interna a Universidade que nos concede a palavra em suas cátedras.
Não podeis dizer que assim sacrificamos a nossa independência. Usamo-la, talvez
com certa energia, combatendo, nesse próprio posto para o qual nos fizeram a
honra de chamar, as doutrinas daqueles que foram nossos mestres, mas apenas as
doutrinas, respeitando os homens, os talentos e as pessoas.
Mais
de um desses afiadores de penas do Univers teria hesitado em proferir a
enérgica profissão de fé do Senhor Lenormant (1) perante um auditório de
seiscentos estudantes em Paris. Os abusos, porém, as enfermidades e as próprias injustiças do corpo de que fazemos parte, não podemos, lealmente, entregá-los à
curiosidade pública.
Seja
qual for, na aparência, a irresponsabilidade de cada um, segundo a declaração
do Correspondant, e qual nele possa ser a liberdade de opiniões, não é claro
que não poderíamos emprestar qualquer solidariedade, em uma série de críticas e
de ataques que viriam assinalar, com o mesmo cunho, cada uma das publicações da
Revista?
É,
portanto, necessária muita caridade por parte de nossos irmãos a fim de que não
nos constranjam a uma desaprovação penosa à nossa amizade, e não nos forcem,
cedo ou tarde, a uma retirada.
Podeis
imaginar quanto esta retirada nos custaria, se tanto almejamos e impulsionamos
com nossos esforços a aparição de um repositório em que pudéssemos defender os
imperecíveis interesses do cristianismo! Quão consolador seria possuirmos essa
fraternidade de armas com tantos homens melhores do que nós e que há muito
aprendemos a venerar e amar!
Peço-vos
desculpar-me, Senhor e caro amigo, a sinceridade dessa expansão, e se minhas ponderações
vos parecerem justas perante Deus, ouso esperar que usareis de vosso prestígio
sobre a Direção para afastá-la do escolho que aponto. Não encontrará em minhas
palavras uma tristeza que jamais me existiu no coração.
Se
alguma existisse, seria a que nele deixaram vossas penas e cruéis provações.
Escrevi-vos em tão dolorosa ocasião. Gostaria, porém, que meu trabalho pertinaz
tivesse-me deixado tempo a fim de estreitar laços que me são tão caros.
Como
é bela essa vida consagrada na solidão voluntária da província ao serviço da
justiça pública, à santidade da família, à defesa eloquente da religião!
É
a verdadeira imagem dessa magistratura antiga cuja queda o presidente de
Brosses apresentou-nos.
Nada
eu tanto desejo como estar unido pela lembrança piedosa de vossa amizade aos
méritos de uma existência tão cristãmente vivida. Destes-nos a esperança, à
minha esposa e a mim, de participarmos das preces que se erguem de vosso lar
patriarcal. A elas de novo nos recomendamos e, associando-vos também aos nossos
votos, neles introduzimos, por vezes, o de em breve rever-vos.
Tenho
a honra de ser, com respeitosa dedicação por vossa pessoa, Senhor e caro Amigo.
Vosso
muito dedicado servo e amigo
A. F. Ozanam
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Carlos
Lenormant (1802-1859). Sobrinho por afinidade de Madame Recamier, acompanhou
Champolion ao Egito e descreveu a expedição em artigos ao Globe. Participou
igualmente de escavações na Grécia. Tendo ingressado na carreira das
Bibliotecas, tornou-se Conservador do Gabinete das Medalhas. Em 1839 foi eleito
membro do Instituto, a ele se devendo numerosos trabalhos científicos e de
história crítica da Arte. Guizot, em 1835, escolheu-o para suplente em sua
cadeira de história moderna na Faculdade de Letras de Paris. Julgando-se,
porém, insuficientemente preparado, permutou-a com Lacretelle, ficando com o curso
de história antiga. Assumiu, porém a de história moderna em 1839. Conta ele que
lhe foi dado, ao estudar as matérias desse curso, examinar melhor o
Cristianismo, ao qual, até então, se mantivera indiferente. As provas que dele
encontrou, conduziram-no da frieza ao respeito a fé. Demonstrou, então,
abertamente, em seu curso o ponto a que chegara e, pela primeira vez, afirmou-se
o cristianismo em uma cadeira oficial.
O
primeiro número do Correspondant (janeiro de 1843) havia publicado o resumo de
sua aula inaugural do ano, no qual se encontrava também uma nítida profissão do
catolicismo. Era grande o comparecimento ao curso de Lenormant. Alguns anos mais tarde, no decurso
da agitação criada pela campanha contra os jesuítas em resposta à campanha pela
liberdade de ensino, suspendeu o governo os cursos de Michelet e de Quinet, que
se tornaram verdadeiras provocações. Em represália, os partidários de Michelet
e de Quinet rebelaram-se no curso de Lenormant, julgando este, então, levado
por um espírito de paz, dever apresentar sua demissão. Empossou-se, porém, em 1849 numa cadeira de arqueologia no Colégio
de França. Foi Lenorrnant diretor do
Correspondant de 1846 a 1855.
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Comentário
A
quem melhor poder-se-ia dirigir Ozanam do que a Foisset, "elemento de
ligação", para exprimir o que almejava? Era Foisset tão firme em suas convicções
como qualquer outro magistrado, arraigado, porém, às tradições do solo, por
profissão e pelos laços de família, sendo naturalmente levado a respeitar a
justa medida. Não poupava objeções a Veuillot que o escutava e respondia:
"Por que não vos teria sempre perto de mim?"
Não
vacilou Foisset em prometer a Ozanam o apaziguamento desejado, na medida em que
as lutas travadas lhe permitissem, sem nenhuma abdicar das armas que se lhe afigurassem
necessárias ao combate. Agradece-lhe Ozanam, após haver manifestado a dor que
lhe causava a saúde periclitante de sua espôsa.
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