Ozanam, Defensor da Fé
Não se pode negar que houve um instante na Vida de Ozanam em que
ele chegou pelo menos a pensar que duvidara de sua fé: ele próprio o confessou
várias vezes. Quando foi, qual a profundidade dessa dúvida?
Como já vimos, Ozanam, em janeiro de 1830, já revelava em uma
carta a seu amigo Materne haver superado a crise. Ele não havia completado
dezessete anos de idade. Isto já nos conduz a situar a época da crise no período
entre 1823 e 1830, durante o qual Ozanam foi aluno do colégio real de Lyon.
Em fins de 1830, conheceram-se Ozanam e Leôncio Curnier em um
curso de desenho. Tal conhecimento transformou-se em uma profunda e duradoura
amizade. A admiração de Curnier por Ozanam foi tal que o levou a escrever um
livro, "A Juventude de Ozanam" que Curnier dedicou a seus filhos, apontando-lhe
Ozanam "como um modelo que eles deveriam esforçar-se por imitar" afim
de "premuni-los contra os perigos de um mundo frequentemente incrédulo ou cético e de preservá-los
dos tristes resultados da sua influência, mostrando-lhes o que foi e o que pode
fazer no século décimo nono, um jovem cristão não menos esclarecido que
fervoroso".
Tão profunda foi essa amizade entre Ozanam e Curnier, que anos
depois, a este escrevia Ozanam: "Não estou contente comigo mesmo, mas
encontro em mim algo que não me desgosta: é a necessidade de amar, de ter e
conservar irmãos que me estimam. Quando então a amizade formou-se, por assim dizer, espontaneamente, por um concurso
de circunstâncias imprevistas, pela vontade de Deus, que se serviu dessas
circunstâncias para aproximar dois homens, então mais preciosa ainda me parece
essa amizade, e, de algum modo, sagrada. Tal é a que se estabeleceu entre nós,
faz seis anos, e que nem o tempo nem a distância arrefeceram." (carta de 9
de março de 1837).
Curnier, em seu livro, descreveu bem como se iniciou essa amizade,
em página admirável na qual se rememora o estado de espírito dos jovens da
época.
"O acaso, ou melhor, a Providência (porque nunca para mim o
acaso mereceu melhor esse nome divino) nos colocou um ao lado do outro. Nós nos
encontrávamos rodeados de jovens que haviam sofrido, uns mais outros menos, a
influência nefasta das paixões ante religiosas do momento, e que se deleitavam
em achincalhar as coisas santas. Ah! eram eles mais dignos de lástima que de
censura, porque eles insultavam e ridicularizavam o que não conheciam. Esses incessantes
ataques a uma religião, objeto do nosso respeito e do nosso amor, esses
ultrajes e essas blasfêmias às quais se misturavam às vezes deploráveis testemunhos de uma corrupção que
não esperava o número de anos, repercutiam dolorosamente no fundo de nossas
almas; mas na presença desse desbordamento de impiedade e no estado de
efervescência em que se encontravam os espíritos, nós não ousávamos, nos
sentindo isolados, protestar de outro modo senão por um silêncio desaprovador e
por uma atitude cheia de tristeza; éramos aliás combatidos entre a indignação e
a piedade. Esse silêncio e essa atitude que cada um de nós havia notado no
outro, tinham já, de si mesmas, em tal meio e em tal momento, um significado sobre
o qual nós não podemos nos enganar : havíamos compreendido, antes de haver
trocado uma palavra, que havia entre nós uma certa comunhão de sentimentos. Um
dia, o escândalo foi tão longe que, sem nada havermos combinado, elevamos os
dois a voz, por um movimento espontâneo, para vingar nossa fé ultrajada. Vimos
então claramente que nossos espíritos pairavam nas mesmas regiões, que pertencíamos
ao mesmo campo, que marchávamos sob a mesma bandeira e a partir desse dia
ficamos unidos por laços de uma simpatia que não demorou em transformar-se em
uma verdadeira amizade. O futuro professor da Sorbonne apertou a mão do
aprendiz industrial e este foi-lhe fiel até o fim. Assim nasceu de uma boa ação
essa doce atração de uma alma por uma alma e que tem o suave nome de
amizade".
Descreve então Curnier a atitude de Ozanam nesse episódio:
"Ozanam foi admiravelmente inspirado nesse dia: falou com
fogo e soube impor-se aos blasfemadores que curvaram a cabeça sem responder. É possível
que ele tenha tido a felicidade de despertar neles alguns remorsos, nesses
refolhos escondidos onde vão refugiar-se nossos bons instintos, quando a incredulidade
nos atinge. Parece-me ver ainda a sua fisionomia, que me havia parecido até
então pouco animada, pouco expressiva e denunciando tanta timidez, transformada
de repente por uma emoção há muito contida e refletindo sua chama interior.
Fiquei impressionado pela firmeza com que confessava sua fé, e o que me
impressionou não menos vivamente, é que não saíra de sua boca uma só palavra de
ofensa".
"Esse protesto pôs fim ao suplicio que nos infligiam
diariamente jovens insensatos; tornaram-se dai por diante mais reservados nos
seus propósitos, tão grande é o império de uma convicção sincera nobremente
sustentada! Se eu participava nessa ocasião da honra da iniciativa, Ozanam somente
teve a honra do sucesso! Foi aquele como que um primeiro cumprimento da
promessa que ele havia feito a Deus, e como um primeiro triunfo na defesa da
verdade à qual ele devotaria sua vida!"
Curnier havia também sofrido a influência das ideias daquele
tempo. Ele narra o estado de espírito em que se encontrava e como também venceu
a crise que o assaltava.
"Quando Deus me deu Ozanam por amigo, eu era muito jovem,
entregue a mim mesmo, longe do lar paterno, em uma grande cidade onde mil
perigos me rodeavam. Em meio ao ceticismo que reinava em toda parte nessa
época, a chama sagrada que acendera em mim uma mãe cristã, estava por se
extinguir, e eu sentia, ao enfraquecimento da minha fé, que eu me aproximava do
instante em que a única força capaz, nessa idade, de se opor ao chamamento das
paixões, me faltaria totalmente. Ozanam apareceu felizmente no meu caminho para
me reter nas bordas do precipício. Operou-se em mim, à sua aproximação, uma
súbita reviravolta. As sombras que começavam a obscurecer a minha inteligência,
se dissiparam. O sentimento religioso reanimou-se e retomou seu domínio;
resolvi ficar firme no caminho do qual correra o risco de me afastar. É assim
que fiquei devedor ao perfeito modelo que tinha diante dos olhos o não perder,
com a minha crença, o mais precioso de todos os bens. Estava no destino de
Frederico Ozanam o preservar muitos jovens dos ataques da incredulidade pelo
seu exemplo. Eu fui talvez o primeiro que ele salvou do naufrágio".
A dúvida que começara a perturbar o espírito de Cumier, teria
sido a mesma que tanto fizera sofrer Ozanam? Parece que não. A crise por que
passara Ozanam era de ordem puramente intelectual. Os ataques contra os
fundamentos da religião, que para ele se apresentavam antes como inabaláveis,
indestrutíveis, levaram-no à leitura de tudo quanto ao seu alcance estava, sem
proporcionar-lhe a plena satisfação que buscava. Foi ai que ele pensou estar
duvidando até mesmo da sua própria existência.
Foi o padre Noirot que "pôs ordem e luz" nos
pensamentos de Ozanam, e este desde então passou a crer com fé inquebrantável,
prometendo a Deus devotar seus dias a serviço da verdade que lhe dava paz.
Ao padre Noirot ficou pois Ozanam devedor do reencontro da
segurança da sua fé, e com ela a satisfação de a defender, comentou Georges
Goyau, que esclarece ter sido nas aulas de retórica que Ozanam, de tanto ouvir
falar de incrédulos e de incredulidade, começou a perguntar a si mesmo porquê
acreditava.
O padre Noirot, professor de filosofia no colégio de Lyon que
Ozanam frequentava, era tido então na mais alta conta pelos ecléticos, à ponto
de Vitor Cousin, que se comprazia nas ironias atiradas aos padres, chamá-lo de
primeiro professor de filosofia da França. A reitoria da Universidade livre de
Paris foi até oferecida ao padre Noirot, e por este recusada, já no ocaso de
sua vida.
Não seria, porém o sistema filosófico pregado pelo padre Noirot
que teria influído decididamente sobre o espírito de Ozanam. O que ele era,
realmente, segundo Sarcey, um extraordinário "plasmador de almas". A
sua pessoa agia mais que seu sistema; a familiaridade de sua alma, comenta
Goyau, tinha mais ação que suas lições; a celebridade do seu professorado
permitiu mesmo, já que o padre Noirot nada escrevera, a dois de seus alunos de
falar de uma "escola lyoneza, a qual, segundo Heinrich, um desses alunos,
"seria inapreensível se quisesse debater com ela os artigos do seu credo, mas,
prevaleceria se tratasse de adquirir o hábito de um método sábio, do gosto
pelas ideias claras, de um poderoso espírito de análise, de um profundo
sentimento do bem intelectual e moral que deve ser proporcionado aos nossos
semelhantes, e de uma fé refletida nos dogmas do cristianismo".
"Todo o aluno que saísse das mãos do padre Noirot, escreveu
Sarcey, era facilmente reconhecível. Havia na escola um pequeno grupo de
católicos de muita convicção, muito ardorosos; a maior parte haviam sido
formado por ele".
Ozanam foi um discípulo dileto do padre Noirot ... Ambos se
compraziam em longos passeios pelos arredores de Lyon. As conversações entre
ambos, nessas ocasiões, firmaram na alma do jovem a vocação de crente e nela
suscitaram a vocação do apóstolo. Foi sob o olhar de um mestre sagaz, diz
Goyau, que findou a crise intelectual de Ozanam adolescente; essa crise, em
lugar de matar o crente fez nascer o apologista; e o ter passado por ela, foi
para Ozanam um benefício!
Tais passeios terminavam geralmente com uma visita ao Santuário
de Nossa Senhora de Fourvieres. Ali juntos oravam diante do altar da Virgem,
que ouviu sua súplica. Qual a alegria do Padre Noirot em ver Ozanam convertido
para sempre em um irredutível filósofo cristão.
Ozanam tinha então quinze anos de idade.
Exaltando a figura do padre Noirot, dele disse o padre Lacordaire
no panegírico de Ozanam: "Durante vinte anos, em uma época em que a
filosofia cristã tinha tão poucos mestres, um homem modesto e que nada
escreveu, o padre Noirot, conduzia pelos caminhos sérios da razão uma multidão
de jovens espíritos dos quais Ozanam foi o maior, mas dos quais muitos
atingiram como ele a celebridade, e todos, em diferentes etapas de sua vida,
atribuem ao seu mestre comum a inquebrantável lucidez da sua fé".
Tivéssemos tido nós, quando jovens, tivesse a juventude dos
tempos atuais, diretores espirituais do porte de um padre Noirot!
A integridade e pureza da fé em Ozanam não podem ser postas em
dúvida. A crise, passageira, logo vencida, na sua adolescência, não atingira as
raízes em que sua fé fora assentada.
A filosofia de Saint-Simon que seus adeptos andavam pregando em
Lyon, e que era uma das causas de temível perturbação nos espíritos dos jovens
da época, começaram a ser refutadas por Ozanam. Duas notas apenas publicadas
por Ozanam no jornal "O Precursor", de Lyon, em 1830, foram
suficientes para fazer calar tais pregadores, que, prometendo dias depois uma
resposta, no jornal "O Globo", se acovardaram e calaram-se.
A refutação de Ozanam foi o germe de sua obra "Reflexões sobre
a doutrina de Saint-Simon", que veio a luz em 1831, quando Ozanam atingia
os 18 anos.
No "post-scriptum" do original dessa obra escreveu
Ozanam: "Para mim, pareceu-me que minhas primeiras ideias, recebendo um
conveniente desenvolvimento, poderiam ser de alguma utilidade; foi o que me
levou a publicar este opúsculo. Muito feliz se estas linhas pudessem reconduzir
a calma em alguma alma agitada pela dúvida, ou reacender o fogo sagrado da
religião e da ciência em algum desses corações que o sopro da indiferença
gelou".
São as seguintes as palavras com que Ozanam encerrou as suas
"Reflexões":
"Por muito tempo desoladoras máximas de egoísmo e de indiferença
pesavam sobre nossa bela Pátria. A critica, em lugar de se dirigir para uma
conscienciosa investigação da verdade, não havia alcançado outro resultado
senão o desencorajamento dos espíritos e a corrupção dos costumes. Mas há no
caráter francês suficiente nobreza e energia. para não permitir uma completa
desorganização moral. Já as ciências coraram da sua própria degradação ; a
filosofia cessou de seu ateísmo; numerosos esforços foram feitos para alcançar doutrinas
mais elevadas, e já o sucesso as coroa".
"Sim, ela reflorescerá a velha terra de França, ela ainda se
revestirá dessa antiga pureza de costumes que se acreditara haver perdido para
sempre; ela se revestirá da sabedoria das suas instruções e da tríplice glória
das ciências, das artes, da indústria. Essa obra é para vós, jovens. Experimentastes todo o vácuo dos prazeres físicos; uma
necessidade imensa faz-se sentir em vossas almas; conhecestes que o homem não
vive só de pão, tivestes fome e sede da verdade e da justiça, procurastes esse
alimento nas escolas filosóficas, correstes para as lições dos modernos
apóstolos, e nada disso encheu vossos corações. Eis que a religião dos vossos
pais veio oferecer-se à vos, as mãos cheias. Não desviai vossos olhares porque
ela é generosa e jovem como vós. Ela não envelheceu nada com o mundo: sempre
nova, ela voa à frente do progresso do gênero humano; ela se põe à sua frente
para conduzi-lo à perfeição".
"E vós, fiéis amigos da fé, que
chorastes como Jeremias sobre as ruínas de Jerusalém, enxugai as vossas
lágrimas e não vos aflijais. Ouvistes o estrondear da tormenta e vos
abraçastes, trêmulos, às colunas do templo, mas a tempestade cessou. Se a terra
treme ainda sob os vossos pés, são os últimos abalos que se fazem sentir; já ao
longe se levanta a aurora dos lindos dias, e a religião, apoiada agora não mais
sobre um cetro frágil, nem sobre tronos em ruínas, mas sobre os braços fortes
da ciência e das artes, vai avançar como uma rainha para os séculos
vindouros".
"Assim se desenvolviam aos meus olhos essas grandes
verdades; pensamentos cheios de consolações e de esperanças se me apresentavam,
e eu sentia premido por dizer o que minha alma experimentava. Eu sei que minha
linguagem é fraca, e meu espírito muito débil ainda: e não é de um homem de
dezoito anos que se pode esperar obra perfeita. Se falhei, se algumas
inadvertências me escaparam, os atribuís, ó leitores, não a mim, mas à minha
juventude e à minha fraqueza... e, se eu vos pareço ter dignamente sustentado a
luta, sabei então quanto poderão os próprios católicos quando seus filhos não temerem de entrar na luta".
Era a alma de Ozanam que se abria e revelava a dor que sentira
em face da negação da verdade e não desejava que outros por ela fossem
atingidos.
Não escapou Ozanam à sanha dos inimigos da religião.
Permitam-me que lhes narre sucintamente um episódio ocorrido em
1850, três anos antes de sua morte. Ele se destaca na carta a Duffieux de 14 de
julho daquele ano e pode ser assim resumido:
"O jornal "O Universo" provocava desde algum
tempo a Ozanam repreendendo-o pela amizade que tinha por Ballanche e Chateaubriand,
querendo levá-lo a dar sua opinião na polêmica que então se travava sobre a Inquisição.
Colocado em situação de não poder deixar de manifestar-se à respeito, respondeu
que não concordava com os redatores do jornal. Então, um leigo, sem autoridade,
sem atribuições, que se escondia no anonimato, acusou-o de haver, por covardia,
por interesse, traído a causa comum e de ter renegado o dogma do inferno. Seu
amigo Duffieux se alarmou e escreveu-lhe. Ozanam respondeu-lhe em tom vibrante,
doloroso, fazendo sua própria justificação e sua profissão de fé.
"Certamente, escreveu Ozanam, eu não sou mais que um pobre pecador diante
de Deus; mas Deus não permitiu ainda que eu tenha deixado de crer nas penas
eternas; é falso que eu tenha deixado ele crer, que eu tenha renegado, que eu
tenha dissimulado, atenuado qualquer artigo de fé. E na carta seguinte ao mesmo
Duffieux ele dizia: "Se divergimos quanto à apreciação de alguns
escritores, como Ballanche e Chateaubriand, entendemo-nos perfeitamente quanto
aos princípios. Cremos ambos que nada é mais perigoso que tomar insípido o
cristianismo, nele procurando apenas belezas amenas e lisonjeiras à nossa
delicadeza. Acho mesmo que muitas almas jovens se perderam por lhes ter sido
dada uma educação muito pouco consistente, não as tendo preparado nem para as
lutas nem para os sacrifícios".
Não quero fatigar mais a vossa atenção. Aqui voltarei, se o
permitirdes, para continuar a examinar aspectos vários da integridade e pureza
da fé de Frederico Ozanam e do seu ardor em defendê-la.
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