FREDERICO OZANAM,
O BEM E O BELO
Quando, em junho de 1951, foi-me dada a ventura de assistir,
ante a Basílica de São Pedro, à solenidade da beatificação de Pio X - já agora
o Santo Pio X, - vieram-me à mente, entre os esplendores de que Roma então se
engalanara, as palavras que um dia havia ele pronunciado a respeito de Ozanam:
"Eu não tenho desejo mais ardente que o de ver propagados, até os confins
do mundo, o espírito e a vida de Ozanam",
Jamais da lembrança se me apagaram a glória daquele dia e o
anseio daquele Santo, Se bem frágil foi-me a atuação ante a ardência daquele
desejo, à minha pequenez o devo; e se algo eu fiz, aos meus confrades sou
devedor que fraternalmente me impeliram a de todos tornarem conhecidas as
cartas primorosas de Ozanam, delas eu mesmo me abeberando.
Hoje, é para de dele falar que mais uma vez recebi um apelo,
que por dimanar de quem veio, vicentino que me serve de modelo, acatei como fora
ordem. Como, porém, falar de Ozanam? Buscá-lo no passado, ou encontra-lo no
presente? E a dúvida me ocorre, porque, se em Paris repousa inerte o corpo, o
encontro bem vivo no meu e no coração dos vicentinos.
E porque o vejo ainda vicejar na obra que nos legou, e no
ardor que na alma vicentina inoculou, para vós, caros confrades, tirei do pensamento,
onde tanto se ele me infiltrou, uma imagem
de beleza e de bondade que nele deixou, e do qual se não apaga.
Se um quadro modesto e pequenino vou exibir ao vosso olhar, não é ele, contudo,
feito de cores esmaecidas de um passado que já não vive, mas de tons vivos de
um presente que vive em nós.
Aquele, pois, que nos disse "vamos aos pobres!”,
digamos agora: "Vamos a Ozanam" .
E o que se nos depara ao encontra-lo? Um ser privilegiado em que dois amores se
casam e se harmonizam: o do bem e o do belo. Quando pela terra ele andou, - e quão curta
lhe foi a vida, - desses dois amores foi apaixonado. Brotaram-lhe do âmago de
sua fé. Em Cristo encontrou a semente dessas duas flores que a alma lhe
embelezaram do colorido o do perfume o coração.
A bondade e a beleza o seduziram e delas se tornou
enamorado.
Bem cedo aprendeu Ozanam a lição do amor. Foi no leite que
bebeu, - é ele quem no-lo diz - e no colo que o embalou. Acima de todos os
amores, aprendeu a colocar o que ao seu Deus era devido, igualando, ao que a si
próprio consagrava, o que ao próximo era prescrito. Assim haviam sido reunidos,
na mais sublime das sínteses, os mandamentos da lei antiga.
Amando o Cristo, nele encontrava o bem em toda a plenitude,
a beleza na própria essência. E o bem e o belo constituíram para Ozanam o enlevo
de sua vida.
Porque era bom, procurava acercar-se do manancial da bondade
e, porque bela lhe era a alma, sentia-se atraído pela beleza que de Cristo
dimanava.
E porque era bom, queria espalhar o bem em torno de si; e
porque de beleza se lhe impregnara a alma, a dos homens e da natureza nela se
refletia. Foi-lhe a vida um tecido em que os fios se mesclavam do anseio de
praticar o bem e do culto ao que era belo. Curto lhe era assim o caminho que da
beleza o distanciava a bondade.
Era-lhe doçura suavizar o amargar que empanava a alma de um
amigo, as agruras que era dor ao corpo e ao coração do pobre.
São suas cartas que no-lo contam, emanações vibrantes desse coração
que todo a todos se dava, distribuindo os tesouros de bondade que nele
inesgotáveis se encerravam, e dessa alma
em que tanta beleza se aninhara.
Que fez Ozanam nesse tempo tão breve que lhe foi a vida?
Espalhou o bem, e pela bondade esmerou-se em imitar o Mestre Divino que lhe
ensinara.
Se a beleza o conduzia para o Cristo, a bondade que d'Ele
hauria, o levava para os homens. E ao seu Deus se entregou, e, imitando-O,
deu-se à humanidade. Pelo Cristo apaixonou-se. Procurou conhecê-lo quanto à
inteligência primorosa o permitiu.
Estudou-Lhe a vida na terra em que se havia hospedado,
revestido da natureza humana. Aprofundou-se em devassar-Lhe o encanto da
doutrina.
E a Igreja de Cristo o seduziu, obra prima que legara à
humanidade. E, amando-a, a defendeu, exaltando-a com o ardor de sua fé e o brilho da inteligência. Com que filial ternura
referia-se em suas cartas ao chefe da cristandade, àquele Pio IX a cujos pés se
prosternara, vibrante de emoção ao ouvir-lhe a voz que a ele paternal se
dirigia, e ao receber-lhe a bênção que amoroso lhe concedera.
Sentindo que Paris e a França precisavam de alimento
espiritual para que se erguessem do torpor religioso que lhes minava as forças,
planejou e concretizou as Conferências de Notre Dame. E o ocupante do púlpito
desse templo grandioso foi aquele mago da eloquência: Lacordaire.
Árdua foi a tarefa de Ozanam para dissipar a incerteza e a
dúvida daquele santo arcebispo de Paris, Monsenhor de Quelen, que era, no dizer
de um historiador, homem de outra época, a cultivar saudades, ao passo que
Lacordaire só nutria esperanças. A obra que aí lançou Ozanam perdura até nossos
dias. Todos os anos parte daquele templo, a espargir-se pelo mundo, a voz da
Igreja, em ressonâncias que alentam e vivificam a alma da cristandade.
Era-lhe encanto, em cada cidade que percorria, contemplar os
santuários que, pela terra, semeava a cristandade.
Extasiava-se em os ver, grandes e belos, como se ansiassem
provar que grande e belo era o Cristo que abrigavam. Artista da pena parecia
Ozanam transportar para as descrições que deles fazia, as cores das telas que
seus olhos contemplavam e toda a concepção artística dos grandes mestres que,
em profusão, ornavam os templos da Itália. A arquitetura em que eram vazados perecia reviver nas cartas que enviava
a seus amigos; o cinzel que lhes decorava as colunas e os altares burilava-lhe
também as páginas em que com tanta acuidade e precisão lhes descrevia as
maravilhas.
O que era belo na natureza, encantava-lhe o olhar e na alma
se lhe gravava. Nas frequentes viagens a que o levavam a ânsia de saber ou o
lenitivo à saúde, extasiava-se ante as belezas do mundo, e as ligava aos
problemas humanos. De Ferney escreveu um dia a Duffieux, seu grande amigo:
"Em presença das montanhas deslumbrantes que nos traçam o horizonte, as
disputas dos homens bem pequeninas se me afiguram. e não posso conceber que
tanto se apressem em retalhar-se, em vez do gozarem do encanto das obras
divinas!".
O desejo de espalhar o bem, não o podia Ozanam conter. Parecia-lhe
que, se o quisesse reter, arriscaria ver partido o coração. E não quis
cingir-se a dá-lo à família, aos amigos e aos companheiros. Foi mais além. Quis
dá-lo ao pobre! Tantos, porém, os encontrou, ocultos nas sombras da miséria que
o brilho da Cidade Luz não conseguia dissipar, que outros procurou que o
ajudassem a entre a pobreza disseminar o bem, enxugando-lhe as lágrimas e
atenuando-lhe as dores. A obra, que então fundou, sofreu perseguições e
embates. As teorias Saint-simonistas de então, como outras que lhe sucederam, atacavam
a caridade por julgarem-na ineficaz e até humilhante para aqueles a quem era
ministrada. E, ufanos, proclamavam seus idealizadores: "Nós elaboramos ideias
e um sistema que reformarão o mundo, e dele para todo sempre arrancarão a
miséria". Esqueciam-se de que a passagem de tais planos para a sua
concretização seria feita por homens falíveis, senão mercenários, traficantes
da credulidade humana. Esqueceram-se, sobretudo, de que a verdadeira caridade é
a sublimação do amor, e que este a ninguém pode humilhar.
"A Assistência humilha, escrevia Ozanam, se nada tem de
recíproco, ... se coloca o pobre na contingência dolorosa para um coração bem
formado de receber sem retribuir. A assistência honra, porém, quando ao pão que
nutre ajunta a visita que consola, o conselho que esclarece, o aperto de mão que
soergue a coragem abatida. E, mais ainda, quando trata o pobre com respeito,
não somente como um igual mas também como um superior, porque sofre aquilo que
nunca sofremos, porque é ele entre nós como um enviado de Deus para pôr em
prova nossa justiça e nossa caridade, e para salvar-nos pelas nossas
obras."
E a obra de Saint-Símon morreu ao nascedouro, enquanto a de
Ozanam viceja, dia a dia mais frondosa, a espalhar-se pelo mundo.
E o que somos nós, vicentinos, senão os continuadores da obra
de bondade de Ozanam, os herdeiros de quanto de belo nela imprimiu? Que
compromissos assumimos quando a ela nos filiamos, recebendo um título que ao de
cristão se veio mesclar, pois que neles se fundem o amor ao Cristo e o amor à
humanidade!
Seja para nós padrão de beleza a vida que Ozanam viveu, e
pela dele procuremos moldar a nossa. Sejamos dignos dele e da legião de
vicentinos que nos precederam, a fim de que os que depois de nós vierem, não
nos acusem de indignos depositários desse legado de bondade que lhe brotou
pujante do coração.
Quis a virgem Maria, com indizível carinho, no dia em que o
mundo cristão lhe celebrava o nascimento, fazer nascer para a Eternidade aquele
novo filho que tanto ao dela fora amoroso e fiel.
Agora que estas duas datas celebramos, peçamos a Ela que
também a nós seja dado contemplar a plenitude da beleza de que tanto Ozanam se
apaixonara, e o infinito de bondade que lhe fascinou o coração. E peçamos ao
Deus que ele tanto amou e a quem tanto procurou servir, que seja um dia
transladado pela Igreja do trono humilde em que vive no coração dos vicentinos
para a glória dos altares de nossos templos, no triunfo de uma vida, toda de
beleza e de bondade.
Cfr. JOÃO
PEDREIRA DUPRAT
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