Se for sempre doce e consolador falar de
Antônio Frederico Ozanam, crescem e se dilatam consolo e doçura, ao proferir o
que nos dita o coração, quando algo do que ele sonhou ante o nosso olhar se
concretiza.
Lançou
aqui Ozanam uma semente, e terreno fértil se lhe deparou. E o coração que a
deitou, outro encontrou, moldado pelo dele, que a recebeu. A semente medrou.
A planta, a princípio pequenina, regou-a o zelo de um vicentino. Cresceu, e flores e frutos foi espargindo, dia a dia mais belos, na fragrância e no sabor
da bondade. A Assistência Vicentina aqui está, oriunda daquela semente, banhada
pelas mãos benfazejas de mais um vicentino, nesse despertar perene da caridade,
cujo manancial soube Ozanam tão bem avivar com os exemplos de outrora, e com as
bênçãos que agora colhe a mãos cheias dos tesouros do Cristo.
Outro
melhor não poderia ser que este templo de caridade, ao qual voz amiga, como se
fora o soar de um sino, tocou-nos a
reunir, agrupando-nos em torno do pensamento de Ozanam, a fim de que a
alma se nos enrije e mais ao nosso modelo se amolde.
Hoje,
motivo especial aqui nos congrega. Se já era do Cristo esta mansão da caridade,
mais dele ainda se tornou.
Passou
ele a residir aqui no milagre da Eucaristia.
E
as bênçãos esta casa acaba de receber do seu legado, o nosso venerado Cardeal
Arcebispo, numa demonstração do quanto lhe merece a obra de Frederico Ozanam.
É,
em verdade, sublime a missão que um dia esposamos, e que vem sendo a nossa
companheira de ideal. Mas, se por vezes, como nesse recinto agora ocorre, não
nos acercarmos em torno da vida e do espírito de Ozanam, como os seus companheiros
de outrora o faziam, o zelo se nos arrefece, a indolência de nós se apossa e os
encargos da vida nos absorvem. Toldam-nos estes, então, a consciência, neles
encontrando aparente razão para protelarmos o exercício da caridade vicentina,
no aguardo de momentos mais serenos em que a ele nos possamos dedicar.
Erro
funesto à alma que fenece; erro de que a pobreza não nos perdoa.
Funesto
à alma que assim se definha e se dilui nos embates da vida, o olhar preso e
pousado o pensamento naquilo que a nós e aos nossos diz respeito, nessa
agitação continua pela conquista, que nunca encontrará limites, dos bens em que
depositamos, esgotados, os nossos sonhos de felicidade.
E
nessa luta e nesses sonhos, esquecemo-nos de que não só dos bens que
diretamente obtivermos, advirá para nós a felicidade. Olvidamos que, outra existe
que de outros seres nos provêm. E esses outros, são também os nossos pobres.
Qual de nós já não sentiu o encanto de um sorriso, partindo muitas vezes dentre
lágrimas incontidas dos olhos macilentos daquele que sofre, por uma palavra
amiga que lhe dirigimos, um presente que lhe ofertamos, transformando-lhe o
abatimento em ânimo que renasce, ou que a dor lhe arrefece por um agasalho que
lhe irá minorar o frio, um alimento a reerguer-lhe o corpo que a fome
debilitara.
É
dessa felicidade que se não pode esquecer o vicentino, pois que de sua missão
lhe é própria; felicidade que não a possuem senão aqueles que a foram buscar no
sofrimento que mitigaram.
Será,
porém, de acusar-nos de egoísmo se assim a procuramos; se, como vicentinos, a
encontramos no desempenho de nossa missão, partilhando da que ao pobre
proporcionamos?
Não
o creio! Antes esse anseio é digno de ser alentado, pois se digno o não fosse,
como admitir que o Cristo o tivesse inoculado no melhor do coração humano?
Lembro-me,
com a nitidez das coisas e dos fatos que a velhice aviva, de algo que na
mocidade me ocorreu. Estava eu internado em um colégio bem longe da pátria;
edifício imenso em centro de frondoso parque. Não era, então, o corpo que me doía;
tinha-o bem moço ainda. Era o coração que o mantinha em prantos, tão distante
vivia do carinho de minha gente. Certo
dia ao penetrar em meu quarto de estudante encontrei sobre a mesa um favo de
mel, encimado por um bilhete que dizia: "Terei seis graus de prazer em
saborear, eu mesmo, este favo de mel; terei quarenta se o comeres". Quão
feliz então eu me senti! A doçura do mel adoçou-me também o coração. Guardei o
bilhetinho. E, coisa singular: Os quarenta graus de prazer que ele teria,
quarenta anos depois lhe proporcionei. Fui visitar o meu colégio de outrora.
Sabia que o amigo que então me consolara, lá ainda morava, não como aluno, mas como
professor, filho de Vicente de Paulo. Bati à porta do colégio. E, o bilhetinho
lhe enviei pelo porteiro, qual cartão de visita. Feliz veio abraçar-me, e feliz
eu me senti, revivendo o conforto de outrora. Não fora ele vicentino, e eu o
pobre, o pobre que tinha lágrimas no coração?
Sim,
meus caros confrades. Inútil seria querer afastar de nós a ânsia da felicidade.
E não é justo que um vicentino a procure na felicidade que aos outros ele mesmo
proporcione? Ai de nós se esse desejo não nos impulsionasse na vida! Para conquistá-la,
até o próprio sofrimento e o sacrifício aceitamos, desde que a ela nos conduza.
E
assim não agiu o nosso Ozanam? Não se cingiria, certamente, a com tanto ardor
conquistá-la na terra se, tal conquista de outra maior o privasse, daquela
que se não finda e que em Deus se eterniza. Era infindo o seu sonho de
felicidade. Não a queria limitada ao que outros, errôneos e cegos, por ela
aspiram e lutam.
Era
a verdadeira, a única desejável, a que ele ambicionava: aquela que é a
precursora de outra que paira no infinito, aliando-se e, por assim dizer, fundindo-se
com a própria felicidade divina.
Tudo
deu Ozanam que dele dependia, e toda a força despendeu em busca desse objetivo.
Paris
Desde
bem jovem compreendeu Ozanam que o único caminho que a ela (felicidade) poderia conduzi-lo seria
aquele que o Cristo traçara à humanidade.
Que
viu Ozanam em Cristo? O que d'Ele ouviu? O desejo de dá-la ao homem que havia
perdido o direito de conquistá-la. Sondou-Lhe a vida; procurou compreender-Lhe
a doutrina, penetrar no âmago de suas palavras, seguindo-Lhe os ensinamentos,
imitá-lo.
Deixara
o Cristo, após a vida curta que na terra passara um legado precioso: a sua Igreja.
Deixara também um novo amor: o amor ao pobre. E Ozanam quis, então, a uma
cultuar, e do outro aproximar-se, (à Imitação do Mestre Divino), tornando-se
paladino da Igreja, e amante da Pobreza. Nesses dois objetivos firmou Ozanam o
seu sonho de felicidade na vida que, também bem curta, na terra haveria de
viver, numa antecipação daquela sem fim, que lhe era prometida, prêmio que com
todas as forças ambicionava.
Volvendo nosso pensamento para um passado, que mais dista de
um século, encontramos Ozanam a palmilhar a vida pela terra de França.
Afigura-se
a nós que, então, lançou Deus um dia o seu olhar sobre aquele que viria a
chamar-se: Antônio Frederico Ozanam. E tudo nos diz que bela lhe achou a alma,
e digna de fazer dela grandes coisas.
Para
cultivar a pequenina planta, de quem esperava ótimos frutos, procurou aprimorá-la. Deu-lhe pais
que ao amor que consagravam ao filho, esmeravam-se em embelezar-lhe a alma. E desses
pais deu-lhe os exemplos de virtudes e abnegação, de fidelidade à Igreja e de
amor ao pobre.
Ozanam mesmo ao dirigir-se a Deus sobre essa mãe adorável, assim, emocionado,
exclamava: "Eu aprendi sobre os seus joelhos o vosso temor, e no seu olhar
o vosso amor". E bem ele sabia que os últimos passos de seu pai, no mês de
Maio de 1837, já alquebrado pela idade, estes os havia dado, dirigindo-se ao
tugúrio de um pobre doente a quem, por caridade, fora levar um lenitivo ao
sofrimento.
Continuou
Deus a olhar com carinho por Ozanam, cuja inteligência e coração, então, apenas
desabrochavam. Seus irmãos, Carlos e Afonso, foram-lhe companheiros preciosos,
e a irmã Elisa a quem tanto queria, aprimorava-se em cuidados, passando para a
dele, sem mesmo o sentir, quanto de belo lhe havia na alma.
Enquanto
adolescente, foram seus mestres e guias, Rousseau, Gebert e Noirot, sacerdotes
que aliavam ao saber, a virtude e bondade.
Assim
revestido dos dons com que, em seus primeiros anos, fora galardoado, partiu
para Paris.
Quão
diverso era o ambiente em que passou a viver, em 1831, o jovem de 18 anos.
Campeava, então, a descrença na ação da Igreja, senão o ataque acirrado à sua
atuação. Afastavam-se os homens das Igrejas. Daquela época, diz-nos
Montalembert, que "a vista de um homem num templo, tanto pasmo causava
quanto a visita de um viajante cristão a uma mesquita".
Tudo
parecia hostil ao jovem estudante. Mais uma vez, porém, a luz divina que o
acompanhava pousou para ele às portas de um sábio que também era um santo:
André Ampère, indicando para sua morada um lar em que o Cristo também residia,
pois que eram dele os corações que lá moravam. Desse
convívio nasceu o encanto daquela amizade tão bela que o prendeu ao filho do
grande sábio: a Jean Jacques Ampère.
Com
o correr dos dias, o que havia de encanto na alma de Ozanam atraiu outras almas
jovens que da mesma beleza partilhavam. E o rol de seus amigos, companheiros do
mesmo ideal, foi-se ampliando.
Surgiram, entre muitos, em sua vida: Lallier, Le Taillandier, Lamache,
Devaux, Clavé. Conheceu-os na Sorbonne e com eles frequentava a Conferência de
História, a que Bailly emprestava luzes e diretrizes.
Dessa
época, quando a ela mais tarde Ozanam em Florença se referia, assim a
descreveu:
“Estávamos
então, invadidos por um dilúvio de doutrinas filosóficas e heterodoxas que, em
torno de nós, se agitavam. Sentíamos o desejo e a necessidade de fortificar
nossa fé, em meio dos assaltos que contra ela desencadeavam os diversos sistemas
da falsa ciência. Alguns de nossos colegas eram materialistas, outros
Saint-Simonistas, outros ainda Fourrierístas, e até os havia deístas. E quando,
nós católicos, nos esforçávamos em patentear as maravilhas do cristianismo, todos
eles nos diziam: Tendes razão se vos referis ao passado. Fez prodígios,
outrora, o cristianismo; hoje, porém, é apenas um cadáver. Vós mesmos, que vos
orgulhais de ser católico, o que fazeis? Onde estão as obras a demonstrar vossa
fé, e que no-la façam admitir e respeitar”.
Mais uma vez luz celeste aclarou-lhe a senda
que devia percorrer.
Insurgiu-se
contra a concepção de que a Igreja falira em sua missão, e passou a defende-la.
Não era, porém, bastante. Pregar apenas, escrever, embrenhar-se em polêmicas,
não seria suficiente para desenraizar concepções que invadiam os cérebros dos
que o cercavam. Era necessário transformar em atos a força e a beleza das
ideias que esposara e que no cristianismo as fora beber.
E
Ozanam, pela pena e pela palavra, constituiu-se arauto da Igreja em que se
concretizavam as máximas sublimes do cristianismo. Ozanam foi, porém, mais
longe.
Em
uma tarde, quando findava o inverno de 1833, - assim o descreve Louis Fliche, -
a troca de ideias de Ozanam e seus companheiros, mais viva havia sido que até então.
E Ozanam dizia: "Quanto é doloroso ver a nossa Santa Igreja assim atacada, deformada, caluniada. Fiquemos de atalaia a fim de enfrentar os ataques que lhe
são dirigidos. Não sentis, porém, como eu o sinto, a necessidade de manter,
fora das conferências militantes, - referia-se Ozanam às conferências de história, - outra pequena Sociedade, composta de piedosos e bravos
companheiros, que unam às obras a palavra, assim demonstrando a verdade da fé
pela sua vitalidade?"
Foi
dessa conversa que surgiu ainda mais forte no espírito de Ozanam o anseio, que
de longe lhe vinha impregnando o espírito, de prosseguir com redobrado ardor na
defesa da Igreja. E também foi a primeira centelha que veio atear o fogo da
caridade dos futuros organizadores das "Conferências de Caridade".
Não tardou esta a transformar-se em promissora realidade. O apelo de Ozanam fora
compreendido! Lamache, que ouvira Ozanam assim falar, quando, 50 anos mais
tarde, a então "Sociedade de São Vicente de Paulo" completava as suas
bodas de ouro, recordava a impressão que lhe ficara desse sublime colóquio.
"Após meio século de distância, - dizia
ele ao comemorar a data auspiciosa, - essa cena reaviva-se-me na memória.
Parece-me ver o olhar de Ozanam coberto de tristeza, mas ao mesmo tempo cheio
de ardor e fogo. Parece-me ouvir essa voz que transbordava a emoção profunda de
sua alma. Ao separar-se o pequeno grupo, levava cada um no coração o traço
inflamado que Nosso Senhor Jesus acabara de nele infundir pela palavra do jovem
companheiro".
A
ideia germinou bem rápida na mente de Ozanam. E como não adquiriria ela pujança
se o coração ardente a impulsionava?
Dias,
apenas, mais tarde dizia Ozanam a seus amigos: "Em paga de tantos sofrimentos
seus, fizemos para o Cristo uma conquista que fosse? Se não obtêm sucesso
nossos esforços, não será isto devido a que alguma coisa falta à eficácia sobrenatural de nossas palavras?
Sim, para que nosso apostolado seja
abençoado por Deus, uma cousa lhe falta: as obras de caridade. A bênção dos
pobres é a bênção de Deus".
Foi
então que Ozanam e Le Taillandier, em noite fria de inverno, tomando aquela
acha com que alimentavam o fogo que os aquecia, levaram-na a um pobre da
vizinhança, dando-lhe calor no corpo e de luz lhe iluminando a alma. Como, porém,
dar rumos amplos à ideia de caridade que neles vibrava?Lá estava Bailly, o
mestre, o guia. E este a esposou e dela
com eles passou a viver, presidindo o alvorecer daquele sonho de caridade.
Não
cederam Ozanam e seus companheiros ante os obstáculos aos empreendimentos de
sua missão. A conselho de Bailly, dirigiram-se ao Padre Olivier, vigário de
Etienne-du- Mont, a fim de lhe expor o plano que elaboravam. Não foram, porém,
compreendidos. Melhor ao Padre Etienne lhe parecia que ensinassem às crianças o
catecismo. Outra, porém, foi acolhida que lhes dispensou a Irmã Rosalie, Filha
de São Vicente de Paulo, melhor soube compreender, com aquele dom feminino do
amor, o nobre sentimento que neles brotava, E, com o senso prático que nela se
unia ao desejo do praticar o bem, desde logo lhes indicou famílias pobres que poderiam
visitar. Fez mais ainda: mostrou-lhes como as deviam tratar, a fim de que,
levando-lhes o alimento ao corpo, também as almas alimentassem.
Em 23 de abril de 1833, realizou-se a primeira reunião dos novos pioneiros da caridade na
redação da Tribuna Católica, sob a presidência de Bailly. E assim nasceu aquela
que seria a nossa Sociedade de São Vicente de Paulo.
Era,
então, a Conferência um reduto pequenino de que apenas Ozanam e seus amigos
partilhavam. O ardor que os inflamava não o puderam, porém, conter em tão
pequeno círculo. Lallier sugeriu desde logo que seu amigo de La Noue também dele
participasse. Ozanam, que parecia adivinhar o futuro da novel Sociedade, apoiou
e defendeu tal pretensão, apesar de aos outros se afigurar que se tratava
apenas de um circulo de amigos que se deviam uns aos outros ajudar no exercício
da caridade. E o circulo se abriu, e outros nele penetraram, a ponto que, já em
1834, mais de uma centena nele abrigava-se.
Já
então o roteiro seguro delineava-se na vida de Ozanam. Escrevia, falava,
ensinava, agia. Mas nessa diversidade havia uma unidade: O amor ao Cristo.
Batalhou
pela Igreja. São disto testemunho as suas preleções e escritos, carinhosamente
compendiados por Jean Jacques Ampère, além de artigos que publicou em jornais e
revistas. Desta sua atuação, são-lhe ainda memorial precioso as cartas que aos amigos dirigia, encorajando-os
na fé católica, descrevendo as belezas do cristianismo e a radiosa
personalidade de Pio IX, que então ocupava a Cátedra de Pedro.
Travou
debates, que os enchia do calor da fé e do brilho da inteligência. Presidia-os,
porém, o espírito de caridade que lhe era inato, podendo, um dia, proclamar:
"Uma das mais doces consolações, no decorrer de minha carreira, é a
certeza de jamais haver magoado alguém, embora defendendo com toda a energia a verdade".
A
par de seus escritos, das aulas que proferia e dos debates em que se empenhava
no culto à Igreja, não se esquecia de jamais Ozanam desse outro legado de
Cristo: o amor ao pobre. Se lhe foi bela a inteligência para defender a Igreja,
formoso lhe não foi menos o coração para defender o pobre.
Caminhava
a passos largos a obra de Ozanam e de seus companheiros. Já em Fevereiro de
1834, convertiam-se as Conferências de Caridade na Sociedade de São Vicente de
Paulo. Bem avisado andou Ozanam ao assim denominar a sua obra de caridade. Modelo
melhor não se lhe poderia deparar que mais lhe definisse a finalidade.
Aquele
círculo em que vivia, e que já de início se abrira, dia a dia se alargava. Já
não era mais apenas a França que nele penetrava. O espírito de Ozanam
espalhava-se pelo mundo.
A
expansão, natural mas imprevista, da obra de Ozanam já estava a exigir, para
que se não alterasse o espírito primitivo,
que um regulamento fosse elaborado e organizado um conselho de direção, a fim
de agrupar quantas Conferências já se achavam disseminadas.
E
assim, dois anos após sua fundação, ou seja, em 1835, surgiram as diretrizes
escritas da novel Sociedade, leiga mas fundamentalmente católica, cujo objetivo
precípuo seria a visita domiciliar ao pobre, sem deixar de abrir os braços a
quantas atividades se coadunassem com a sua caridosa finalidade.
Ano
por ano, foram-se as Conferências dilatando. Em Julho de 1844, ao deixar Bailly a presidência da Sociedade, já eram em número de 144. E não somente era Paris a
sua feliz detentora. Já as havia espalhadas pela França, e duas figuravam em
Roma. E os sete confrades primitivos, haviam-se multiplicado. Eram 4.561, e
cerca de 10.000 famílias eram aliviadas de seus sofrimentos.
Gossin,
ao terminar o curto período de sua presidência, teve a felicidade de ver
elevadas as Conferências a 369 que amparavam material e espiritualmente 17.000
famílias. E outra finalidade foi também concedida a esse denodado presidente: O Papa Gregório
XVI, pelo breve apostólico de 10 de Janeiro de 1845, concedia indulgências
especiais aos membros da Sociedade. Era
a consagração solene da Sociedade pela Igreja, e que vinha firmar a sua finalidade
e a sua organização, foram inúmeros os benefícios que desse ato lhe advieram.
Em três anos apenas estendeu-se a Sociedade pela Bélgica, Irlanda, Inglaterra,
Escócia, Irlanda, Alemanha, Suíça, Turquia, Canadá, Estados Unidos e México,
tendo sido agregadas desses países, 91 Conferências.
*
* *
Já,
então, não mais a considerava o clero com a natural indecisão de uma obra que,
sendo católica, era totalmente de leigos.
Narra-nos Albert Fougault, o gesto do bispo de
Montpellier, Monsenhor Thibaut, que, ao ir celebrar a santa missa, cercado de
vicentinos, soube que se achava desprovida de recursos a caixa da Conferência.
Já estava paramentado. Isto, porém, não impediu que em gesto rápido tirasse do
bolso a tabaqueira de ouro e a entregasse ao presidente. "Não tenho
dinheiro, disse-lhe o prelado, mas vendei isto. Posso usar uma tabaqueira mais
simples de madeira, e assim, ao menos, tereis pão para os vossos pobres".
E, galgando os degraus do altar, nem tempo deixou ao presidente para manifestar-lhe
a gratidão.
E
esses gestos e essas atitudes tornaram-se incontáveis por parte do clero
francês. Chegou mesmo o bispo de Strasburgo
a vender a própria carruagem para que não faltassem recursos às conferências de
sua cidade.
Tal
era, então, o zelo que brotava dos corações vicentinos, que confrades havia
que, durante a semana, chegavam a visitar 8, 10 e até 12 famílias. E, por
incrível que nos pareça, a nós que apenas uma visita, ou duas no máximo fazemos
por semana, houve um confrade em Paris, da Conferência de Saint-Merry, que
tomou a seu cargo a visita de 35 famílias.
Novo
presidente sucedeu a Gossin.
Baudon
tinha apenas 28 anos ao ser guindado à presidência, e já era veterano de 10
anos na Sociedade.
Bem
o conhecendo, disse dele, então, o Padre d'Alzon: "Ele é jovem e ativo,
ama a Sociedade e possui fortuna. Por muitos anos poderá dirigir, e com
abundantes frutos, a Sociedade". Foram proféticas estas palavras. De 1848
a 1886 estendeu-se a sua presidência, e com tal eficiência desempenhou seu
encargo que, - é ainda Fougaut quem no-lo conta, foi cognominado: "O
segundo fundador da Sociedade."
Que
sublimes exemplos deixaram os vicentinos de 1848 e 1849 por ocasião da
revolução que convulsionou Paris, e da epidemia de cólera que dizimou tantos
dos seus habitantes.
Baudon,
como presidente recém eleito, e Ozanam que modesto o acompanhava,
multiplicaram-se em obras de assistências às vítimas daquela eclosão de revolta
e desta grande calamidade.
Ante
a miséria decorrente da revolução, coube às conferências de Paris mitigar a
penúria de 2.500 famílias, tocando 60 a cada confrade. O Doutor Trélat, então
prefeito de um dos distritos de Paris, ainda que livre pensador, não vacilou em
entregar tal tarefa aos vicentinos, e ante os resultados por estes conseguidos,
manifestou-lhes a sua imensa gratidão. Bem conhecido de nossos confrades é aquele
episódio, então ocorrido, da morte de Monsenhor Afre, o grande protetor da
Sociedade, e do qual bem perto se encontrava Ozanam. Baudon também sofreu por
essa ocasião um acidente que lhe fraturou uma perna, deixando-a para sempre
defeituosa. Se esta missão foi penosa aos membros da Sociedade, bem maior foi a
que desempenharam durante os dias tenebrosos em que a peste invadiu a cidade,
arrebatando-lhe 16.000 mortos. Somente em Paris nove seções de confrades foram
organizadas. Quanta heroicidade, então, patenteou-se. Dia e noite, por vezes
passavam os vicentinos ao lado dos enfermos. E se não lhes venciam o mal,
vestiam-nos e os acompanhavam ao cemitério, regressando a outros leitos em que
grassava a epidemia. Descrevendo esses
dias, narra ainda Fougault, que os vicentinos que foram destacados para
Montataire (no Oíse )após mês e meio de um trabalho insano, tal perfume deixaram
de caridade, que seus habitantes, de tal modo se achegaram à religião que
organizaram, como homenagem de gratidão, uma conferência vicentina, para que deles
se não apartasse a lembrança do quanto de bondade haviam recebido.
Aumentavam
dia a dia as Conferências vicentinas. Foi nessa época que se foram formando em
França os Conselhos Particulares a fim de agrupar as conferências isoladas.
Vieram a seguir os Conselhos Centrais e, no estrangeiro, os Conselhos
Superiores que serviam de traço de união com o Conselho Geral.
No
espaço de apenas 3 anos teve Baudon o consolo de ver sua Sociedade desdobrar-se.
Nesse período, foram agregadas pelo Conselho Geral 3.254 Conferências novas e
constituídos 195 Conselhos Particulares, 32 Conselhos Centrais e 15 Conselhos
Superiores. No seu coração, porém, três feridas se abriram: foi Ozanam que o
deixou em 8 de Setembro de 1853, Gossin em 1º de Abril de 1855 e Bailly em 12
de Abril de 1861.
Foi
a Baudon que coube ainda sofrer as perseguições que se desencadearam contra a
sua Sociedade. No México, na Espanha e na Itália sofreu a Sociedade grandes
golpes, e a guerra de 1870 atrasou-lhe de muito o desenvolvimento. Baudon,
porém, não esmoreceu. Foi o iniciador do "Voto Nacional" visando a
ereção da Basílica de Montmartre, e, para a sua Sociedade, instituiu "a
missa das quatro intenções" que uniria aos pés do altar no mesmo dia em
todo o mundo os corações dos vicentinos. Bem podemos avaliar, meus caros
confrades, o que a Baudon representou a solenidade do cinquentenário da sua Sociedade,
vendo em Paris, em 1883, reunirem-se ao Conselho Geral representantes dos
Conselhos de tôda a comunidade vicentina, e ouvir da eloquência de Monsabré os
votos que formulava para que entrasse a Sociedade de São Vicente de Paulo
"cheia de grandes e vigorosas ambições em um novo cinquentenário".
Já
alquebrado pela moléstia que o iria vitimar em 1888, passou Baudon a presidência
da Sociedade em 1886 a Pagès, entregando-lhe, cheia de vitalidade, a obra de
Frederico Ozanam. Presidiu Pagès a Sociedade pelo espaço de 17 anos, ou seja de
1886 a 1903. Foi uma época de calmo progresso, durante a qual nasceram mais
3.200 conferências e, entre elas, as que surgiram em nosso pais, na
cidade do Rio de Janeiro, sendo a 1a. em 04/08/1872.
Sucedeu-lhe
Calon, cuja presidência efetivou-se de 1904 a 1913. Ao deixa-la agrupavam-se em
torno da Sociedade Vicentina 8.352 Conferências.
Coube
a Calon a indizível ventura de ainda, ao findar sua missão, presidir em Paris,
em Abril de 1913, à celebração do centenário do nascimento de Frederico Ozanam.
Do mundo inteiro acorreram vicentinos para glorificar o seu excelso fundador. A
titulo de legado do Papa compareceu o Cardeal Vanutelli. Quis assim o soberano
Pontífice dar à Sociedade do São Vicente de Paulo a demonstração de seu
paternal apoio.
Dessa
magna Assembleia surgiu mais vibrante, o desejo de ver um dia elevado à glória
dos altares a imagem de Frederico Ozanam.
De
1914 a 1924 presidiu os destinos da Sociedade o Visconde de Hendecourt.
Deflagrara-se a guerra e suas consequências fizeram-se sentir amargamente entre
as fileiras vicentinas. Somente entre os confrades da França cerca de 2.000
pereceram.
Penosa
foi a missão desse presidente da Sociedade. Inúmeros problemas se lhe
defrontaram, ante as consequências da guerra. Não eram apenas os socorros
materiais que se tornavam precisos, mas o reerguimento moral de um povo que tanto
sofrera. Novos recursos tornaram-se necessários para que Sociedade pudesse
continuar no desempenho de sua missão de caridade. Novos pobres surgiram: eram
as denominadas "Família nº 2", isto é, aquelas que tudo haviam perdido
do que antes possuíam. A missão do vicentino tornou-se então ainda mais
difícil, e muita habilidade lhe foi preciso para que a esmola não revelasse
compaixão, a fim de não ferir a suscetibilidade daqueles que envergonhados a
recebiam.
Foi
então que também muitas obras novas surgiram, dentro do mesmo espírito de
Ozanam, entrosando-se às de assistência social.
E
uma evolução operou-se na Sociedade de São Vicente de Paulo, sem nada perder,
entretanto, do seu espírito primitivo.
Escolhido
em 1924 o Sr. de Vergès, para o cargo de Presidente do Conselho Geral, esposou
os novos traços que se vieram aliar à Sociedade, imprimindo-lhe, no dizer de
Fougault, "esse caráter ao mesmo tempo progressista e tradicionalista que
se havia esboçado na presidência de seu antecessor".
E
a Sociedade de Ozanam, conservando-se embora dentro da modéstia cristã, passa a
representar papel de maior notoriedade entre as obras da Igreja. Foi assim que,
em fins de 1933, contavam-se Conferências, disseminadas pelo mundo em número de
12.500, e os confrades a elas pertencentes aproximavam-se de 200.000. Só naquele
ano, em que a Sociedade celebrou o seu centenário, 489 novas Conferências se
lhe vieram agregar.
Não
se contentou porem Ozanam com um século apenas de vida dessa obra que legara à
pobreza do mundo. Quer mais. Não lhe quer ver o fim, enquanto a pobreza residir
na terra.
E
outros vêm repetindo, daquela mesma Paris, a conclamar o mundo Vicentino, o
brado de ozanam: "Vamos aos pobres".
A
Vergès sucedeu Jacques Zeller em 1946. A este a grande consolação foi reservada
de celebrar, em 1953, o 1º centenário da morte de Ozanam. Foi durante a
presidência desse abnegado confrade, que o Santo Padre, em mais uma demonstração
de seu carinho, designou o Cardeal Aloisio Masella, Cardeal Protetor de nossa
Sociedade. Não foi, porém, sem espinhos a sua missão, pois dias amargos
atravessou durante a guerra que tanto vitimou a França.
Após
a sua renúncia ao cargo que com tanto zelo desempenhara, foi eleito presidente
da Sociedade o Professor Pierre Chouard, em cujo coração pulsa e vibra o mesmo
amor e zelo pelos destinos da obra de Ozanam.
Em
ressonâncias de caridade vem-se o brado de Ozanam repercutindo pelo Brasil. E
com santo orgulho podemos clamar que na Província Eclesiástica de São Paulo,
vicejam 1.100 conferências, formando o maior núcleo vicentino do mundo, com
mais de 14.000 membros ativos.
Assim,
meus caros confrades, perpetua-se Ozanam em sua obra de caridade. Assim hoje a
cultuamos; assim certamente o farão outros vicentinos que nos virão suceder.
Hoje
tantos anos decorridos continua para nós a viver Ozanam. Em um túmulo em Paris
repousa-lhe o corpo; pelo mundo todo lhe vibra o coração em ardores de
caridade, e no céu sentimos que lhe paira a alma de escol, na concretização em
Cristo do seu sonho de felicidade.
Possamos
nós exclamar um dia, quando prestes estiver a terminar a missão que nos coube, e no
preâmbulo estivermos da eternidade: - Senhor! Não ouso pronunciar como Ozanam:
"Por
que vos temer, se tanto vos amei? Mas, Senhor, cuidei dos vossos amigos, os
pobres desta terra, e minha felicidade encontrei em fazê-los menos infelizes.
Senhor! Onde havia fome, procurei mitiga-la; onde havia frio, procurei suaviza-lo
; onde havia dor, procurei atenua-la, e onde a tristeza provocava lágrimas,
procurei colhe-las, transformando-as em sorriso para vós".
JOÃO
PEDREIRA DUPRAT
Outubro
de 1957
Relação dos Presidentes do Conselho
Geral Internacional, da Sociedade de São Vicente de Paulo
1. Emmanuel Josph Bailly 1836-1844
2. Jules Gossin 1844-1848
3. Adolphe Baudon 1848-1886
4. Antonin
Pagès 1886-1903
5. Paul Calon 1904-1913
6. Louis D'Hendecourt 1913-1924
7. Henri de Vergès 1924-1943
8. Jacques Zeiller 1943-1954
9. Pierre Chouard 1954-1969
10. Henri Jacob 1969-1975
11. Joseph Rouast 1975-1981
12. Amin de Tarrazi 1981-1993
13. César Augusto Nunes Viana 1993-1999
14. José Ramón Diaz-Torremocha 1999-2010
15. Michael Thio 2010-2016
16. Renato Lima 2016-
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