CARTA
A SENHORITA SOULACROIX
PARIS, 22 DE DEZEMBRO DE 1840
Menina
Amélia Soulacroix
No momento de iniciar, sob os auspícios da Senhora sua mãe, esta
correspondência
destinada a consolar as agruras do meu exílio, sinto-me invadido
por uma doce emoção. Não consigo, apesar disso, escapar a um respeitoso
embaraço, idêntico ao que senti durante as primeiras visitas que
lhe fiz. Tento sossegar-me na esperança de que a sua indulgência para as
minhas cartas seja igual à que teve para com a minha pessoa. Seja-me assim
permitido dar continuidade, nestas páginas familiares, à intimidade dos
nossos últimos encontros. Terá que ter paciência para comigo, se eu vier
a desabafar consigo, dando-lhe conta dos meus pensamentos. Será uma
boa maneira de me conhecer melhor, mas pode vir a acontecer que, por
isso, eu venha a ficar diminuído a seus olhos. Por outro lado terei a vantagem
da minha completa franqueza, ganhando assim espaço na sua confiança. As
nossas relações epistolares serão tanto mais atraentes quanto mais
sejam marcadas por esta simplicidade que ambos apreciamos e que eu
admiro muito particularmente na sua pessoa, simplicidade essa que em
si convive com tantos méritos e graças.
Passaram
já nove dias em que por esta mesma hora estava consigo para para
me despedir de forma longa e dolorosa. O encanto da sua presença esses
curtos instantes, não foi mesmo assim suficiente para dissipara
tristeza antecipada de uma próxima ausência. Saiu-me na altura um
atropelo descontrolado de palavras de que depois me arrependi. Espero
poder contar com a sua compreensão para esta fraqueza em tal circunstância.
A nossa separação ser-me-ia menos dolorosa se não me tivesse
apegado tanto à sua pessoa. Não é necessário descrever-lhe o conteúdo
dos meus pensamentos durante os sombrios dias da viagem: É
que depois dos fins de tarde passados junto de si, eu começava logo a contar
as horas até ao encontro do dia seguinte. Nesta penosa jornada ia assim
vendo esta separação alongar-se pelas cem léguas que nos separam agora
e mais ainda perante a perspectiva desta dura prova que serão estes seis
meses previstos para a nossa separação. Nestas circunstâncias, deixo-me
abater perante estas penosas perspectivas, e só me resta refugiar-me nas
minhas recordações, as quais me conduzem pelos caminhos bem conhecidos
a uma casa de que aprecio muito a hospitalidade de uma família
que fez renascer de novo em mim, sentimentos filiais. Encontro assim
com facilidade o lugar favorito que me permitiram ocupar, ouvindo
as melodias comoventes que mãos hábeis arrancavam ao piano. Ou
então ouço o som de uma querida voz de que saíam as suas ternas e
encorajadoras palavras. De todas essas palavras recordo especialmente
aquelas
que pronunciou, cheias de nobreza e bondade, no dia em que o
seu consentimento foi decisivo para a minha felicidade. A memória des- se
momento solene enche então o meu espírito e como que preencha o
vazio da solidão, quase conseguindo anular as horas e a distância, na
certeza
que o futuro resgatará todos os problemas do presente. Hoje,
nesta
vida nova que o destino me reservou, entre a agitação da chegada
e
as necessidades deste início, uma sensação nova se me impôs. É que
deixei
de estar sozinho. Escapo assim àquele sentimento de me fechar
sobre
mim mesmo, a este egoísmo involuntário a que está condenado
todo o ser humano quando não se encontra rodeado por afetos sagrados.
É
necessário ter no âmago de nós próprios um centro de referência que
influencie
toda a nossa vontade. É preciso um altar onde se imolem todas as
alegrias e todas as dores. É também preciso uma imagem adorada, aos pés
da qual se possa consagrar toda uma existência. Se esse altar estivesse vazio
acabaria sempre por se colocar lá a própria imagem, apenas para se
viver fechado sobre si próprio. Estou salvo desse perigo. Uma figura angélica
veio tomar posse deste santuário do coração. Aí é o seu reino impondo-se
como ponto central visível de todos os ângulos. Nunca se perdendo
de vista não deixa também de tudo nos lembrar, já que não se
sobrepõe nem a obrigações nem ao trabalho, antes os comandando e inspirando.Tenho
por isso mais coragem para o esforço necessário e mais confiança
no sucesso. É como a estrela do navegante, não só não o distrai do
seu caminho, como antes o guia.Às vezes esta feliz mudança no meu destino,
parece-me tão maravilhosa que temo que tudo não passe de um sonho.E
então que no retiro discreto do meu quarto tiro do peito a joia que me ofereceu no dia da minha partida e abrindo-a contemplo o anel de cabelo ali fechado. A minha imaginação rapidamente me devolve a visão
da encantadora cabeça de onde foi cortado e que toda é um sorriso
para mim. Ao mesmo tempo, como que volto a sentir a doçura da mão
que me foi permitido tomar... E quando os meus lábios respeitosos pousam
apenas no medalhão, ao menos fico com a certeza que ali tenho o testemunho que me confirma que não é nenhuma ilusão sonhada e que
se bem que não tenha outra solução que não seja esperar, ali tenho a garantia dada pelos seus pais e por Deus de um direito entre todos o mais belo, o direito de amar.
Os
mesmos pensamentos que assim animam o meu íntimo, também influenciam o exterior, fazendo-me aparecer as coisas externas sob um
aspecto
diferente. Paris, onde cinco anos de estadia tinham extinto a minha curiosidade de visitante, como que se reveste de novo de forma a
despertar a minha curiosidade de recém-chegado. Os monumentos diante dos quais passava indiferente sem desviar o olhar, interessam-me agora
como se neles tivesse descoberto belezas que antes me passavam desapercebidas.
Domingo passado ao passear a minha prima nas galerias do
Louvre, parecia-me que os quadros dos grandes mestres eram vistos por
meus olhos com cores mais vivas que antes. Há já quem tenha ficado
admirado por eu, leigo na matéria, me interessar pelas maravilhas musicais
dos artistas de renome. Agora, ao percorrer as ruas mais tranquilas
e limpas da cidade, enquadradas por graciosos jardins, os meus olhos
procuram sempre uma casa com escritos a pensar numa próxima locação.
Cada um dos meus passos é acompanhado por uma recordação.
Hoje
eu vivo na esperança de amanhã poder mostrar e preparo com antecipação o prazer das alegrias partilhadas. Já antecipo as surpresas da amável
viajante, prevejo as suas impressões e diviso os seus traços em todos
os lados. Minha cara, a sua mãe lhe dirá o quanto o seu nome
me
valeu junto da senhora Tranchant e do Senhor Péclet. E há mais: sem sem ter
escrito uma só palavra aos meus amigos acerca dos meus projetos e das minhas diligências, fui recebido por um coro de felicitações, ao ponto
de pensar que podia haver exagero. O Sr. Ampère tinha sabido da notícia
através do Sr. Montalembert em casa de Senhora Récamier. Desta forma a notícia corria já nas esferas mais altas do mundo literário. O seu pai é aí muito conhecido e isso justifica que os cumprimentos sejam sinceros
e unânimes. Não tenho aliás qualquer participação nos méritos que
se projetam na minha insignificante pessoa e sobre o facto de no início
da minha atividade professoral se projetar um reflexo poético.
Sou
considerado hábil e consciencioso ao mesmo tempo, por não ter
querido
abordar o estudo da Literatura cavalheiresca, sem me informar
sobre
o tipo de sentimentos que nela encontra tanto lugar. Estes gracejos com
que se diverte a sociedade parisiense, mais viva e mais ligeira que a má-língua
lionesa, não retiram nenhum valor aos votos que me dirigem em
relação à minha felicidade futura. Eu acredito nas previsões positivas que
a amizade justifica. É que a amizade é uma coisa divina. Sendo filha do
Céu comunga com ele dos seus segredos. Aqui ela terra ela possui a chave dos corações e é por isso que da leitura que deles faz, resulta que a verdade futura lhe seja mais transparente. Além disso vendo tantos homens excelentes
testemunhar-me uma amizade tão calorosa depois de todos estes
meses e anos de ausência, sinto-me um pouco mais confiante ou talvez
um pouco presunçoso, e chego à conclusão que sem nunca ter tido o
dom de agradar, tenho a felicidade de conseguir prender ficando preso
também.
Mas todas estas consolações não conseguem adoçar o azedume da
distância. Nem eu quereria fazer-lhe crer, a si minha querida, que tudo isto
me fizesse esquecer o que mais me falta. É certo que não imito de modo
algum a penitência de Dom Quixote quando ele se retirou para o deserto
para desempenhar o papel do Belo Tenebroso. Mas para dizer a verdade
esta privação é-me bem dura. Longa será a espera. Estes laços com que
me prendeu são como a corda atada à pata de um passarinho que tanto
mais aperta e magoa quanto mais ele se debate. Estes sentimentos cuja
intensidade inicial me espantou, há apenas três semanas, tornaram-se agora
ainda mais fortes e imperiosos. E eu que pensava que não poderiam
ser mais fortes do que então já eram. Constato que por este ponto de
vista ou por qualquer outro, que os anseios da alma não têm limites.
No
início de tudo, uma simples indisposição de alguns dias, tinha-me revelado, dadas as minhas inquietações, quão fácil tinha sido deixar-me
tomar
por este sentimento. Só agora é que posso avaliar quão duradouro ele
vai ser. E neste caso o exílio não é melhor do que a doença. Porque será
que quaisquer que sejam as minhas tribulações a sua imagem me prevalece
sobre todas elas?
Ao
menos a sua pessoa fará com que elas sejam menores, afastando dois receios.
O primeiro é o de eu não ter merecido o lugar que ambicionava nas
suas recordações. Compreenderei que queira aceitar plenamente os desígnios
da Providência, que guarde um grande respeito pela vontade de
seus pais, e tenha uma indulgência extrema que talvez faça com que não
fique rapidamente indiferente a este estranho, o qual esteve tão breve
tempo junto de si e tão mal o aproveitou. Por certo que rodeada do carinho
e do culto da família admirável que é a sua, não sinta qualquer falta
dele. Contudo ele espera de si a generosidade de ser tocada pelo pensamento
de o fazer feliz e dando-lhe uma palavra, lhe dareis com ela muito
mais. Espera ele ainda, que não o esquecendo, ouçais falar dele sem
desagrado e que até vos interesseis pelo seu isolamento e pelas suas provações.
Podereis estar certa quando ele estiver de regresso à vossa presença,
voltará talvez melhor e sem dúvida mais ardente, por isso atrevo-me
a pensar que não tereis de vos arrepender.
Outra apreensão que toma
o meu espírito é a propósito da sua saúde a qual a partir de agora não
é apenas preocupação sua. É que com os rigores da estação, aliados à
despreocupação que tem consigo própria, temo que não dê a atenção devida
aos cuidados da senhora sua mãe. Peço-lhe que pense que no outro extremo
da França alguém se aflige e se preocupa com a mais pequena indisposição
que possa acontecer-lhe, ou que possa estar com a face mais pálida,
ou até que esteja a dormir pior. Evitai-me senhora estas penas e dizei-me, por
caridade, que tudo está bem convosco. Pela minha parte faço votos
ardentes para que assim seja, que espero sejam eficazes já que são de
todos os momentos. Os meus lábios balbuciam em permanência, no meio
das minhas ocupações, uma única oração: Que Deus me conserve aquela
que Ele mesmo me destinou, aquela cujo sorriso é o primeiro raio de
alegria que desde há muito iluminou o meu caminho na terra.
Peço-lhe
aceite a certeza do meu profundo respeito sendo que desta
forma
serei o vosso obediente servidor.
A. F. Ozanam
Sei que gosta de cartas claras. Lembro-me talvez demasiado disso. Desculpe-me de não ter podido ser breve e de ter feito como em Lyon, onde não conseguia nunca deixar-vos. Para a próxima serei mais discreto e talvez consiga ser menos grave.
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