Ozanam,Mestre e Educador no seu Tempo e no Nosso (*)
Falar sobre FREDERICO OZANAM,
comentar aspectos de sua atividade polimorfa, isto é, sob muitas formas, reviver uma das personalidades
de maior projeção na primeira metade do século passado. Bem podemos imaginar o
que foi essa vida toda dedicada a um programa de atuação pela verdade católica.
OZANAM viveu numa época bastante
difícil, sem dúvida muito mais difícil que a nossa. Lutas e incompreensões,
desajustamentos sociais, civilização em mudança, sob o luzeiro das idéias democráticas
que então despontavam, fizeram emergir verdadeiros apóstolos das grandes
causas.
Primeira metade do século 18, que
viu nascer OZANAM, PASTEUR, JOÃO BOSCO nas duas primeiras décadas; século da
atividade de LAMENNAIS, VICTOR HUGO, KARL MARX, de CHATEAUBRIAND e MONTALEMBERT,
intelectuais brilhantes que lutaram com ousadia pelos seus ideais! Foi o século
das grandes invenções, invenções de habilidade humana que trariam conseqüências,
ainda que extraordinárias, causaram desequilíbrio na organização social. A
introdução da máquina a vapor viria transformar profundamente o sistema de
transportes, e a locomotiva completaria as alterações desse sistema. O
telégrafo encurtaria distâncias e haveria de levar a todos os recantos do mundo
os conhecimentos de que eram possuidores apenas alguns privilegiados. Em meio a
todas estas modificações da estrutura social, proliferavam as mais diversas
doutrinas filosóficas; umas, agitando idéias, e outras promovendo lutas pelo
desenvolvimento. Não raro essas doutrinas e essas transformações conduziam a
convulsões sociais, num remodelar incessante da sociedade. E no meio de tudo
isto, vagava, por vezes em mar revolto, a barca de PEDRO, que em Roma
sustentava ardorosamente os princípios cristãos.
A revolução de 1792 se prolongava
pelas décadas do século seguinte. Não eram mais os dias tremendos do terror.
Não mais decapitavam sacerdotes, aristocratas ou criminosos, mas as idéias
sofriam amputações profundas, muito mais importantes que o rolar de cabeças de
reis, magistrados ou sacerdotes. Não se encarceravam os homens, mas se
aprisionavam as idéias e com elas, muitas vezes, também os ideais.
Foi na segunda década desse século
que ressurgia do caos originário da Revolução Francesa, que apareceu ANTONIO
FREDERICO OZANAM. Seu nascimento deu-se numa fase de lutas, em que o domínio de
Bonaparte se estendia para além dos Alpes. Nasceu em Milão, sob a dominação
francesa, mas radicou-se em Lyon, onde permaneceu durante a adolescência e
mantinha sua residência.
Desde muito jovem, não obstante sua
timidez, manifestara um temperamento de lutador. Não procurava lutar, mas,
sabia defender-se.
Toda sua formação processou-se no
Colégio Real de Lyon. Colégio bem diferente dos de nossos dias. Dele há uma
descrição de EDGARD QUINET, que nos diz o que era esse colégio sob a
Restauração. Possui “abóbadas tenebrosas, portas trancadas e gradeadas, capelas
úmidas e altos muros que impediam a entrada do sol”. OZANAM foi aluno externo
desde 1822. Os estudos referem seus biógrafos, eram rigorosos. O ambiente teve
marcada influência sobre o jovem
estudante, mas muito maior foi a ação benéfica que sofreu de um de seus mestres
– Padre NOIROT – a quem ele deveu muito de sua formação cristã. NOIROT era
realmente um Mestre, e como tal, formava discípulos. Professor de Filosofia era
tido em alta estima pelos intelectuais de maior autoridade. COUSIN, entre eles,
costumava qualificar o Padre NOIROT “como o primeiro professor de filosofia da
França”. (GOYAU).
No dizer de GOYAU: “A pessoa do
Padre NOIROT exercia maior ação que seu sistema; a familiaridade de sua alma
produziu ação mais profunda que suas lições, e se a celebridade de seu
professorado permitiu aos contemporâneos falar de uma escola lionêsa, é
preciso, para bem avaliar a magnitude deste fato intelectual, reler uma página
do professor HEINRICH, um dos discípulos de NOIROT: “Esta escola é inigualável,
se sê quiser determinar seu sistema e debater os artigos de seu Credo: ela existe, se sê trata do hábito
de um método sábio, do gosto pelas ideias claras, de um possante espírito de
análise, de um profundo sentimento do bem intelectual e moral que se deve fazer
a seus semelhantes, e geralmente de uma fé refletida nos dogmas do
cristianismo”.
Como se vê, NOIROT não era apenas
professor, mas um verdadeiro Mestre. Ele e OZANAM passeavam juntos nos
arredores de Lyon e nessas manifestações íntimas de amizade e interesse por sua
formação moral e intelectual, firmava-se a fé no coração do jovem discípulo.
Vinte anos mais tarde escreveria OZANAM: “Ele – o padre NOIROT – colocou em
meus pensamentos ordem e luz”.
Mas não foi fácil esse período da
vida de OZANAM. Mergulhado nos estudos, ávido de saber, com a inteligência
viva, todo ele era precocidade. Dedicando-se seriamente aos estudos, era
assaltado por dúvidas. Durante o curso de retórica (oratória), de tanto ouvir
falar de incredulidade e de gente que não acredita em Deus, foi tomado de
dúvida atroz. É o que nos revela uma carta datada de 5 de janeiro de 1830.
OZANAM tinha 17 anos, quando escreveu: “É necessário que eu entre em alguns
pormenores, sobre um período penoso de minha vida. Esse período começou quando
estava no curso de retórica e que terminou no ano passado. A força de ouvir
falar de descrentes e incredulidades, eu me perguntava: porque eu cria? Eu
duvidava e, entretanto, eu queria crer. Eu repelia a dúvida. Lia todos os
livros em que a religião era provada, e nenhum me satisfazia plenamente. Cria,
durante um ou dois meses, baseado na autoridade de tal raciocínio: uma objeção
sobrevinha ao meu espírito, e eu duvidava ainda. Oh! Como sofria! Sofria porque
queria ser religioso. Procurava VALLAR: VALLAR não me satisfazia. Minha fé não
era sólida e, no entanto, gostava mais de crer sem razão do que, duvidar,
porque isto me atormentava em demasia. Entrei no curso de filosofia. A tese da
Certeza perturbou-me. Num instante cri poder duvidar de minha existência”.
(O´MEARA, p.11).
Foi esta a primeira crise de OZANAM,
então em plena adolescência. Venceu-a, diz-nos GOYAU (L.c., p.S), graças ao
Padre NOIROT. Com ele o espírito de OZANAM encontrou o prumo.
Esta primeira crise foi bastante
dura. Dela OZANAM guardaria impressão profunda, da qual jamais se esqueceria.
No prefácio das Obras Completas,
iria dizer muito mais tarde: “A incerteza do meu destino eterno não me deixava
repouso. Segurava-me desesperadamente aos dogmas sagrados e parecia-me
senti-los quebrar em minhas mãos. É então que o ensino de um sacerdote filósofo
me salvou. Colocou em meus pensamentos ordem e luz: cri desde então com uma fé
segura e, tocado de um bem estar tão raro, prometi a Deus votar meus dias ao
serviço da verdade que me dava a paz”.
Como são diferentes os dias da época
de OZANAM comparados aos nossos dias ou os dias de hoje! O sistema que adotamos
na formação dos nossos adolescentes não deixa tempo para ter dúvidas... e nem
certezas! Por certo, muitos serão os estudantes de nossas escolas médias que
passam pelas mesmas dificuldades e questionamentos, como OZANAM. Mas onde eles
iriam encontrar um padre NOIROT para conduzi-los ao caminho certo? Onde encontrar
o ambiente da seriedade, da confiança, da ética, do incentivo do Colégio Real
de Lyon? Pobre geração de hoje que não duvida, porque não tem tempo para
duvidar. E não tem dúvidas porque não aprendeu a pensar e questionar. Nosso
ensino, falto de objetividade, excessivamente de viva voz, oral, desordenado e
ineficiente, atua enchendo nossos estudantes de uma pseudociência, que, por ser
falsa e incoerente, não chega sequer a suscitar dúvidas no espírito do jovem
adolescente. Ele não estuda, porque memoriza. Não compreende, adivinha. Não se
forma, informa.
OZANAM partiu para Paris para
ingressar na Faculdade de Direito. Ia só. Suas credenciais eram ótimas, mas não
esperava lá encontrar sequer um conhecido. Ia, porém, armado de uma fé robusta.
Os cuidados da mãe carinhosa, seus ensinamentos inesquecíveis, a piedade que
lhe incutira na alma, eram escudo seguro nos embates que iria dentro em pouco
travar.
O isolamento de Paris era-lhe muito
desagradável. Procurava consolar-se com a correspondência ativa dessa época.
Assim escrevia ele: “Permita-me querida mãe, que a force a uma despesa de
quatorze “sous” para que lhe possa mandar notícias deste pobre Frederico, que
tão bem você e eu conhecemos, e que não se julga esquecido em Lyon, ainda que
uma distância de cem léguas dela o separe”. E continuou: “Minha alegria fugaz
naufragou completamente. Agora que me encontro sozinho, sem distração nem
consolo externo, começo a sentir toda a tristeza, o vácuo imenso de minha
posição. Eu que tanto me acostumara aos entretenimentos familiares, encontrando
tanto encanto e doçura em rever, cada
dia, reunidos em torno de mim, os entes queridos, e que tanta necessidade
sentia de conselhos e encorajamento, aqui estou desterrado, sem apoio e sem
ponto de ligação, nesta Capital do egoísmo, neste turbilhão de paixões e erros.
Quem se apieda de mim? Os jovens meus conhecidos residem muito longe para que
os possa encontrar frequentemente. Ninguém mais eu tenho senão você, mamãe,
para expandir a alma: você só e o bom Deus... Mas estes dois entes, quantos não
valem?”.
Este trecho mostra-nos a
sensibilidade da alma de OZANAM. Quantos filhos saberiam hoje ter palavras de
tanta ternura!
A transição na formação de OZANAM de
colegial para acadêmico foi crivada de dificuldades. O ambiente estranho, a
cidade imensa, a falta de companheiros, tudo contribuiu para acabrunhá-lo. OZANAM ingressa na Sorbona e logo sente profundamente a adversidade envolvente.
No velho e famoso instituto universitário dominava o agnosticismo.(¹) Imperava
a incredulidade. Os professores valiam-se da famosa liberdade de cátedra para
atacar o cristianismo. E a mocidade que frequentava os cursos intoxicava-se. De
repente OZANAM se viu no meio dela!
Não foi na Sorbona que OZANAM encontrou o Mestre! Fora dela, pelo menos
fora dos seus cursos é que ele foi topar com AMPÈRE, o qual, por assim dizer,
continuou a obra do Padre NOIROT.
Desse homem extraordinário,
profundamente consciente, OZANAM haveria de lembrar-se durante toda a vida. A
generosidade de AMPÈRE foi sempre assinalada por OZANAM. AMPÈRE era, por assim
dizer, a ponte de ligação entre Paris e Lyon. Eis o que diria mais tarde a
respeito, OZANAM: “Da humilde e tranquila vida familiar que, faz seis meses, é
a minha, volta-se meu pensamento para aqueles dias em que, ao deixar Lyon pela
primeira vez, chegava eu, jovem ainda de dezoito anos, ao seio da movimentada e
perigosa solidão da capital. E recordo, então, a casa tutelar que se abriu para
abrigar minha inexperiência, a família que se dignou admitir-me no número de
seus filhos, e aquele que, absorvido pelo sem número de ocupações e honrarias,
achou vagar, não se desdenhando tal encargo, para me servir de pai. Essas
recordações deixam-me sempre em estado de agradecimento e enlevo. Então, comovido por tanta bondade da
Providência, pergunto a mim mesmo, inquieto, que pretendeu ela de mim,
colocando minha juventude sob tão raros patrocínios? A afeição que, mais de uma
vez, me testemunhastes, e, de modo especial, no fim de minha estada em Paris,
deixa-me pensar no prolongamento para o futuro dessa influência que tão feliz
eu senti no passado. Talvez devemos compreender que sejam desígnios da
Providência Divina que certos homens influenciem o destino de outros homens,
podendo essa atuação ser hereditária. Entre tantos dos que herdastes,
permiti-me incluir esse patrocínio, de que tanto me honrava o vosso pai”.
Continuando, OZANAM assim se
pronunciou: “Em certo colóquio que mantive convosco, no ano passado, eu vos
confiei às hesitações que me eram comuns com todos os jovens que passam da vida
escolar para a vida prática a minha repugnância pela agitação dos negócios, as
minhas tendências pacíficas, os sonhos de estudos e a necessidade moral em que,
entretanto, me encontrava de acercar-me de meus pais, levando uma vida de
trabalho em Lyon.
Confiei à você, igualmente, a idéia que me haviam sugerido, e
que parecia conciliar os pendores de meu espírito com as exigências de minha
posição”.
Sob
a tutela de AMPÈRE, e depois, no convívio com LACORDAIRE, MONTALEMBERT e,
CHATEAUBRIAND, OZANAM fortalecia cada vez mais sua fé. E pode, durante o curso
acadêmico, prosseguir naquele programa que o entusiasmo da adolescência lhe
ditara, e, mesmo sendo bem conhecido, vale a pena reproduzi-lo. É o trecho de
sua carta a FOURTOREL, escrito aos 17 anos: “E se pretendo escrever um livro
aos trinta e cinco anos, devo iniciar aos dezoito os numerosos trabalhos
preliminares”. “Conhecer uma dúzia de línguas para a consulta às fontes e
documentos; ter regular noção de Geologia e de Astronomia para poder discutir
sistemas cronológicos e cósmicos dos povos e dos sábios; estudar, enfim, a
história universal em toda a sua amplitude, e das crenças religiosas em toda a
sua profundidade, eis o que cumpre fazer a fim de atingir a expressão de minha
ideia”.
Este foi o programa que OZANAM
levou, ao atravessar as portas da Sorbona. Diz o comentador que essa carta
constitui a explicação de toda a sua carreira.
Na Sorbona OZANAM logo estabeleceu
amizades. Seu encontro com LALLIER, do qual não mais se separaria na amizade,
deu-se de modo curioso.
LETRONNE, um de seus professores,
como era então muito comum, atacava a Igreja, comentando de modo desairoso a
questão do gênese. Concluía pela inexistência do dilúvio tão bem assinalada nas
sagradas escrituras. OZANAM, de um lado e LALLIER de outro estavam em brasas. Não se
conheciam. Encontraram-se junto ao Padre GIBIER com quem comentaram a aula do
referido professor. Novamente se viram juntos no curso de JOUFFROY, então reconhecido
anti-católico. Os ataques de JOUFFROY tiveram pronta resposta. OZANAM
encabeçava a lista de protesto. Eram poucos os católicos, mas sua atuação foi
viva e positiva. Os ataques do velho mestre cessaram.
Raros são os exemplos como esse nos
dias de hoje! E mais raros ainda os estudantes que ousam tomar tais atitudes.
Para isso não basta muita coragem, nem muita fé, mas uma convicção sólida e uma
cultura suficiente para rebater os argumentos que vêm habitualmente a tona nas
discussões desse gênero.
Conquistada a láurea, OZANAM quase
imediatamente se tornou verdadeiro Mestre. Advogou muito pouco tempo. Logo foi
nomeado professor de Direito em
Lyon. Para ele criou-se especialmente uma cátedra. Seus
méritos, sua sabedoria, sua cultura invejável, foram elementos indiscutíveis
para que se lhe oferecessem uma cátedra.
Como o tempo se transformou! Hoje em
dia, especialmente entre nós, o caminho para as cátedras é, em geral, o
inverso. Criam-se Faculdades – a lei em primeiro lugar – alugam-se casas que se
procuram adaptar para que se ministrem as aulas; depois procura-se o
catedrático. Modo estranho, sem dúvida. Mas os resultados não são estranhos.
Especialmente na América do Sul, constituem mania a proliferação de institutos
de ensino mal aparelhados e com professores medíocres. Não é de se estranhar,
então, ver tão medíocre o ensino ministrado! Clama-se por todos os cantos:
faltam homens!... mas não se cuida de formá-los bem.
A aula inaugural de OZANAM foi
sensacional. Eis como ele mesmo a descreve em carta de 15 de janeiro de 1840 a HENRIQUE PESSONEAUX:
“Uma multidão assistia ao discurso de abertura, chegando a quebrar portas e
vidros... Desde então, a sala não deixou de estar sempre cheia, embora possa
conter mais de duzentas e cinqüenta pessoas. Entrei, entretanto, com ousadia
pelo campo das digressões filosóficas e históricas que as matérias podiam
comportar, nem mesmo recuando diante das verdades mais duras. Não me furto,
porém, ao ensejo de provocar um sorriso no auditório, pois, como diz DE MAISTRE,
“a agulha faz passar o fio”.
Sabemos que a vocação de OZANAM era
a das letras e não da jurisprudência. Conquistou logo o grau de doutor em
Direito e pouco tempo depois o de doutor em Letras. Em ambas as
láureas, mas principalmente na última, OZANAM revelou-se o Mestre profundo
conhecedor de sua matéria.
Sua tese sobre “Dante e a Filosofia
Católica” mostra e comprova como ele seguiu fielmente o programa traçado! A
reivindicação de Dante como católico e apóstolo, tirando-o do conceito então em
moda, de ser considerado mero poeta, bem demonstra como todo o trabalho de
OZANAM era votado à procura da verdade!
Para bem interpretar DANTE fora
necessário conhecer muitas línguas como se propusera aos 17 anos. E a cátedra
veio-lhe ao encontro. A narrativa do seu concurso dá-nos uma idéia de como era
difícil o acesso ao magistério superior. Nada menos que oito provas em latim,
grego, italiano, alemão, inglês e espanhol. E eram vários os concorrentes,
alguns deles especialistas de renome. E OZANAM era católico militante, o que,
na época e mais ou menos ainda hoje, constituía fator negativo ponderável.
Mas o valor de OZANAM superou todas
as dificuldades. E o êxito foi completo! Iniciou seu curso na Sorbona como
professor suplementar e quatro anos mais tarde passou a efetivo.
Memoráveis foram suas lições. Como
disse com muito acerto TRISTÃO DE ATHAYDE: “OZANAM era dos mestres que possuíam
os três “C”, isto é, a Ciências, a Consciência e a Comunicabilidade”.
Profundo conhecedor da matéria de
sua especialidade, a literatura estrangeira, haveria, por certo, de formar
discípulos. OZANAM conta-nos seus biógrafos, terminava a aula recebendo uma
salva de
palmas. Logo os alunos dele se acercavam e com ele discutiam o tema da
preleção. Mas tarde acompanhavam-no
ao jardim de Luxemburgo e com ele palestravam animadamente, indo até sua casa
onde os recebia e os punha à vontade. Esse o verdadeiro Mestre! Os discípulos
comprovam-no.
Como são raros hoje em dia tais
modelos de professor! A vida agitada dos nossos dias não deixa instante para
essas reuniões literárias. Acabada uma aula, professor e alunos se repelem como
se fossem os pólos do mesmo sinal de uma pilha elétrica. Bem poucos os
professores que levam seu ofício como um sacerdócio, tanto do magistério
secundário como superior que tenham as atitudes de OZANAM! Essa é a obra
intelectual do jovem lionês.
Mas, sua ação foi também
profundamente educativa. Ainda jovem acadêmico lutou com seus companheiros e
pode instituir as famosas conferências de “Notre Dame”, onde a palavra
eloqüente de LACORDAIRE atraia toda Paris.
Seu exemplo como professor consciencioso
que preparava cuidadosamente suas lições, por certo, haveria de calar fundo na
mente de seus discípulos.
Mas OZANAM tinha um programa. E
teria que executa-lo. E o fez na sua obra máxima realizada nos curtos 23 anos
de apostolado. Fundou a Sociedade de São Vicente de Paulo.
Seu início foi a Conferência de
História. Eis como OZANAM relata sua atividade nesse setor: “Não ignoras qual
era, antes de minha partida de Lyon, o alvo de meus sonhos. Sabes que eu
aspirava organizar uma reunião de amigos que, juntos, trabalhassem pela
ciência. Longo tempo permaneceu estéril esta ideia. Apenas um amigo abrira-me a
porta de uma reunião literária, bem pouco numerosa, resquício de antiga
sociedade dos bons estudos, e cujos processos, pouco científicos, quase não
deixavam margem ào deixavam margem
edade dos bons estudos, e cujos processos, pouco cient filosofia e à série de investigações. Nos reuníamos
em acanhado recinto. Apenas quinze membros mantinham-se fiéis a estas sessões
de estudos, e somente questões transcendentais sobre o futuro e o passado
ousavam apresentar-se. Agora, graças ao zelo de alguns dos antigos membros, a
sociedade progrediu extraordinariamente, contando sessenta sócios e, entre
eles, várias celebridades. Numerosos ouvintes assistem às sessões, ficando o
amplo salão em que se realizam completamente lotado".
“Julgamos necessário impor condições
bastante severas para a admissão dos candidatos. Não obstante, multiplicam-se as
candidaturas e já recrutamos jovens de grande talento. Alguns desses jovens –
viajantes precoces – visitaram diversos países europeus e um deles chegou mesmo
a fazer a travessia do mundo. Aprofundaram-se uns nas teorias da arte, outros
sondaram problemas de economia política. O maior número, porém, entrega-se ao
estudo da história e parte ao da filosofia. Existem, ainda, em nossas fileiras
duas ou três dessas privilegiadas a quem Deus concedeu asas, e que um dia se
tornarão poetas, se antes a morte ou as
tempestades da vida não as colherem no caminho”.
"O setor tumultuoso da política está
fora de nossos debates. Afora isto, existe plena liberdade. Apresentam-se também, questões de alta
relevância, quando jovens filósofos exigem do catolicismo a prestação de contas
das suas doutrinas e das suas obras. Então, seguindo a inspiração do momento,
um dos nossos lança-se à arena, desenvolve o pensamento cristão, mal
compreendido, recorre à História, para patentear as suas gloriosas
concretizações, e, encontrando, por vezes, mananciais de eloquência na
grandiosidade do assunto, estabelece sobre bases sólidas a união imortal da
verdadeira filosofia e da fé. Não se trata, bem entendido, de discutir
proposições teológicas, mas, sobretudo, o alcance científico e social do
Evangelho. A discussão é franca, e todas as opiniões, mesmo as dos
são-simonistas, são admitidas na tribuna. Contudo, sendo os católicos em número
equivalente ao dos que o não são, e, por outro lado, sendo eles mais ardorosos,
devotados e assíduos, é sempre a favor deles que se inclina a vitória
intelectual. Reina, também, entre eles, franca e íntima cordialidade, uma forma
de especial fraternidade, mantendo, em relação aos companheiros, constantes benevolência
e polidez”.
“Um
grupo de dez do qual faço parte, uniu-se de modo particular pelos laços do
espírito, e do coração, formando uma espécie de cruzada literária, constituída
de amigos dedicados, entre os quais não existem segredos, uns aos outros,
desvendando a alma para mutuamente transmitirem alegrias, esperanças e
tristezas. Algumas vezes, quando mais puro era o ar e suave a brisa, à
claridade do luar que banhava a cúpula majestosa do Panteão, diante desse
monumento que parecia querer alcançar o céu e do qual, entretanto, arrancaram a
cruz, como a impedir o impulso, pôde um guarda, de olhar inquieto, contemplar
seis ou oito jovens, de braços dados, a perambular, durante horas a fio, pela
praça solitária". "De fronte serena e passo calmo, suas palavras
tinham vibrações de entusiasmo e sensibilidade. Falavam de coisas terrenas e
celestes; entretinham-se em pensamentos generosos e piedosas recordações. Eram
conversas sobre Deus, os pais, os amigos que desfrutavam a doçura do lar, a
pátria, a humanidade". "Não compreendia tal linguagem o parisiense
sensual que apressado os acotovelava em busca de prazeres. Era uma língua morta
que a bem poucas pessoas era dado conhecer. Eu, porém, os entendia, pois que
deles fazia parte, com eles pensando, falando e sentindo dilatar-se o
coração".
Não obstante os numerosos encargos
que possuí não descuida da atuação fora da Universidade, isto é, no mundo
político. E isso OZANAM comunicava ao amigo FALCONNET, em carta de 21 de julho
de 1834: "Quanto às opiniões políticas estamos igualmente de acordo, isto
é, desejaria eu também o sacrifício do espírito político em benefício do
espírito social. Conservo, certamente, em relação à velha realeza todo o
respeito que se deve a um glorioso inválido, mas não me apoiarei nele,
porquanto, com sua muleta não poderia mais acompanhar os passos das novas
gerações. Na verdade não me oponho nem rejeito qualquer organização
governamental, mas não as aceito senão como instrumentos destinados a tornar os
homens mais felizes e melhores. Se queres fórmulas, aqui estão algumas: Creio
na autoridade como meio, na liberdade como meio, e na caridade como objetivo
final. Há duas formas principais, e estas duas formas podem ser animadas de
princípios opostos. Ou consistem na exploração de todos em benefício de um só:
é a monarquia de Nero, é o tipo de monarquia que tenho horror; ou é o
sacrifício de um só, em proveito de todos; é a monarquia de São Luiz, que
reverencio com amor; ou se resumem na exploração de todos em favor de cada um:
como a república do terror, república amaldiçoada; ou afinal consistem no
sacrifício de cada um em proveito de todos, e é esta a república cristã da
Igreja primitiva de Jerusalém, e talvez a dos dias vindouros, a mais alta etapa
a que se possa alçar a humanidade".
E continuou OZANAM expondo seu
pensamento: "Todos os governos se me afiguram respeitáveis, enquanto
representam o princípio divino da autoridade. E é neste sentido que compreendo
o "Omnis potestas a Deo" de São Paulo. Penso, porém, que, em face do
poder, se torna necessário um lugar para o princípio sagrado da liberdade. Sou
de opinião que deva ser criticado e advertido com coragem, de modo intrépido e
altaneiro, o poder que explora em vez de se sacrificar. A palavra foi feita
para se tornar o obstáculo que se antepõe à força. É o grão de areia contra o
qual vem quebrar o mar".
"A
oposição é útil e louvável, mas não a oposição violenta. Obediência ativa,
resistência passiva: as "Prisões" de SILVIO PELLICO e não as
"Palavras de um Crente".
Foi nesse época que OZANAM que, impressionado com a irreligiosidade de
seus colegas, e no afã de levar a palavra de Cristo a todos os corações,
procurou e conseguiu a instituição das famosas Conferências de Notre Dame. Ele
mesmo relata-nos como foi na carta de 15 de março de 1835 à seu Pai:
"São
magníficas essas conferências e são assistidas pelos elementos de maiores projeções
da capital: LAMARTINE, BERRYER, etc. uma multidão de literatos e de sábios e,
grande número de jovens das escolas. O recinto reservado para os homens abrange
toda a imensa nave, abrigando cinco a seis mil pessoas. Estou encarregado de
fazer o comentário dessas conferências para o jornal "Universo".
Pagam-me vinte e cinco francos por cada um, e as conferências serão em número
de oito. Se o bolso pouco recebe, garanto-lhe que o espírito nada perde. É
impossível ouvir em parte alguma dissertações
mais eloquentes. Contudo, o padre COEUR, nosso compatriota, distingue-se
também, pelos seus sermões em Saint-Roch, e, por outro lado, SAUZET proferiu
ontem na Câmera dos Deputados um discurso que despertou unânime admiração,
tendo sido comparado aos melhores de BERRYER".
OZANAM não separava suas
preocupações do estudo da História e de sua atividade social. Procurava
fundamentar esta com aquela. Eis o que vemos nesta sua carta de 13 de novembro
de 1836 ao amigo JANMOT: "Oh! Se na idade média a sociedade enferma não
pode ser curada senão pela imensa efusão do amor que brotou, de modo especial,
do coração de São Francisco de Assis; se mais tarde novos sofrimentos apelaram
para as mãos caridosas de São Felipe Néri, de São João de Deus e de São Vicente
de Paulo, quanto de caridade, dedicação e paciência não seria agora preciso
para curar as dores desses povos miseráveis, mais indigentes que nunca, por
terem recusado o alimento da alma, ao mesmo tempo que lhes acabava o pão para o
corpo. A questão que divide os homens de nossos dias não é mais uma questão de
formas políticas, é uma questão social, consistindo em saber-se qual levará a
melhor, se o espírito do egoísmo ou o do sacrifício; se a sociedade não será
apenas uma exploração, em larga escala, em proveito dos mais fortes, ou uma
consagração de cada um em benefício de todos, e, principalmente, para a proteção
dos fracos. Muitos homens existem que possuem em excesso o que mais ainda
ambicionam; muito mais numerosos existem que não possuem o suficiente, e mesmo
coisa alguma e, que almejam apoderar-se daquilo que não lhes é dado. Entre
essas duas classes de homens uma luta se esboça, ameaçando tornar-se tremenda:
de um lado, o poder do ouro; de outro, a força do desespero. Entre esses dois
exércitos inimigos, seria preciso que nos precipitemos, senão para impedir, ao
menos para lhes amortecer o choque. E nossa idade juvenil e nossa condição
medíocre mais fácil nos tornam o mister de mediadores, mister já para nós
obrigatório pelo título de cristãos. Eis a utilidade possível da nossa
Sociedade de São Vicente de
Paulo".
Antes da instituição das
Conferências de Notre Dame, preocupou-se com a formação de seus companheiros e
com BAILLY institui as Conferências de História. Logo depois, seria levado, por
força das circunstâncias, à transformação da Conferência de História na
Conferência da Caridade. As discussões, quase sempre estéreis das mesmas,
acabaram por desagradar-lhe. O clima tornava-se dia a dia mais favorável para a
transformação. Chamado ao debate para mostrar o que então fazia a Igreja,
viu-se, de repente de mãos vazias. Não vacilou um instante. Convocou seus
companheiros de ideal. "Vamos aos pobres!" Foi o brado lançado no
pequeno cenáculo. Ressurgiu uma nova ideia. Fundou-se um novo agrupamento que
viria transformar aquela mocidade universitária
da Sorbona e de todo o mundo.
Notem como são expressivas suas palavras, na carta dirigida a CURNIER de 9 de março de 1837: "(...) Não sei se já
observaste que coisa alguma facilita mais a familiaridade entre dois homens que
o comer, o viajar ou o trabalhar em comum. Ora, se atos puramente materiais têm esse
poder, mais ainda o terão atos morais. Se dois ou mais homens se associam para o
bem, será perfeita sua união. Assim, pelo menos, assegurou Aquele que disse no
Evangelho: "Em verdade vos digo, quando estiverdes reunidos em meu nome,
eu estarei no meio de vós". É por este motivo que, em Paris, quisemos
fundar nossa modesta Sociedade de São Vicente de Paulo, e é, talvez, também, por
essa razão que o Céu a quis abençoar. Você poderá ver na circular que anexei à
esta que, sob os auspícios de nosso humilde e ilustre patrono, já se acham
reunidos na Capital duzentos e vinte jovens, e que a obra espalhou-se além das
colônias, até Roma, Nantes, Rennes e Lyon. Aqui, particularmente, nossos propósitos
tomam vulto e se concretizam. Somos mais de trinta; não nos falta dinheiro e a
benevolência das autoridades Eclesiásticas, após algumas leves nuvens,
mostrou-se em toda a sua plenitude. Verás que em Paris o desejo é apertar os
laços dessa confederação de homens de boa vontade, estabelecendo entre eles
contatos regulares, a fim de que se conheçam, se animem e sustentem mutuamente
pela força do exemplo e da prece. A sociedade de Nimes, a primeira a
instalar-se nas províncias, não se negará a essa fraternal imitação, e suas
irmãs considerar-se-ão felizes e orgulhosas de entrar em contato com ela. Não
achas que é maravilhoso sentir o coração pulsar num único som com os dos
duzentos outros jovens espalhados pelo solo de nossa França? Não achas que, lançando-se a boa obra
recém organizada, como se fora uma moeda, no tesouro comum, a ambição é vê-la
perder-se no sem número de boas obras que lá foram também lançadas,
confundindo-se todas elas em uma só oferenda para Aquele de quem procede todo
bem? E, independentemente da alegria presente, que decorre dessa comunhão de
caridade, não existem firmes esperanças para o futuro, mesmo temporal, da
sociedade, aonde vai tomar assento esta nova geração, e para o futuro eterno de
cada um de nós, em cujo benefício será levado em conta o que todos tiverem
feito".
E continuou OZANAM expondo seu
pensamento: "Verificamos dia a dia tornar-se mais profunda a cisão surgida
com ímpeto na sociedade civil. Não são mais as opiniões políticas que dividem
os homens. É bem menos. São os interesses. De um lado, o campo dos ricos, do
outro lado os dos pobres. Em um reina o egoísmo que tudo quer reter; em outro o
egoísmo que ambiciona de tudo apossar-se"."Entre os dois há um ódio
irreconciliável e as ameaças de uma guerra próxima que será de extermínio.
Resta um único meio de salvação; colocarem-se os cristãos, em nome da caridade,
entre os dois campos. Que eles caminhem, como desertores benfeitores, de um
campo para outro, obtendo esmolas dos ricos e dos pobres resignados. Levem eles
dádivas aos pobres, e aos ricos, palavras de reconhecimento. Que habituem uns e
outros a se olharem novamente como irmãos, e lhes comuniquem um pouco de
caridade mútua. E esta caridade, paralisando e abafando o egoísmo dos dois
partidos, e diminuindo aos poucos as antipatias recíprocas, fará com que os
dois campos se ergam, destruindo as barreiras de preconceitos. Despojando-se,
então, de suas armas de cólera, marcharão ao encontro um do outro, não para se
baterem, mas para se fundirem, para se abraçarem e não formar mais que um só
rebanho sob o cajado de um só pastor".
A fundação da Sociedade de São
Vicente de Paulo constituiu marco indelével na vida de OZANAM. Foi ela o
primeiro fruto visível de seu apostolado fecundo. Não contava mais que 20 anos,
e já sabia tocar com mãos de mestre na chaga maior daquela Sociedade enferma.
Compreendeu muito cedo que primeiro teria de formar Santos e depois apóstolos.
Santidade e apostolado haveriam de andar juntos para resolver aquela camada
social que, então, dominava a burguesia que o terror levara ao poder sucedendo
à aristocracia. E a Sociedade de São Vicente de Paulo se fundiu com OZANAM.
Onde quer que ele esteja, haveria de vivê-la intensamente. É o que vemos quando
se localizou temporariamente em Lyon.
Vejamos o que ele escreveu em carta de 21 de
agosto de 1837 ao seu amigo Le Taillandier: “Tens aqui muitos amigos que se rejubilam
com tua feliz aliança, mas que, ao mesmo tempo, lamentam ver perdida a
esperança que nutriam de tua companhia. Refiro-me de modo especial a CHAURAND,
a LA PERRIÈRE
e ARTAUD, pois se quisesse nomear todos quantos te querem bem, seria preciso
nomear toda a Conferência de São Vicente de Paulo, visto que a de Lyon está
intimamente unida à de Paris. Esta união constitui a nossa força, e esta força
aumenta cada vez que, em alguma parte, se funda uma nova Conferência, como
aconteceu ultimamente em Dijon e Tolosa. Não poderias organizar uma também em
Mans? Não queres dar-nos novos confrades, o primeiro fator de nossa Sociedade?
Não procedas, como tanto outros, a quem a família fez esquecer tudo o mais.
Tens no coração bastante amor para que o possas derramar mesmo fora do lar.
Terás necessidade de maior número de graças que no passado. Não será, pois, o
caso de praticar menos número de boas obras. Possa cada um de nós, à medida que
envelhecemos em idade, envelhecer também em amizade, em piedade e zelo pelo
bem. Possa o patrocínio daqueles a quem consagramos a nossa mocidade: Vicente
de Paulo, a Virgem Maria e Cristo, nosso Salvador. Adeus. Sempre teu, muito
afetuosamente”.
* Palestra
proferida durante uma das Reuniões Interprovinciais promovidas pelo Conselho
Metropolitano de São Paulo da SSVP.
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