3.1. Carta de Frederico Ozanam a Teófilo Foisset.
Lyon, 12 de abril de 1840
Senhor e caríssimo amigo,
É com a mais viva gratidão que acuso o recebimento do vosso precioso livro e da carta, não menos amável. Não pude percorrer aquele e ler a outra sem me convencer, mediante uma comparação cujo lado feliz me pertencia, de que vossa tese é verdadeira e que os cristãos são os únicos a saberem ser amigos.
Este título, que tão caridosamente me dais, eu o aceito com júbilo, e não hesito também em vô-lo dar. É ele a expressão de um sentimento, já velho de dez anos, porquanto, desde então, minhas primeiras leituras da Revue Europêenne despertaram em mim, para com os seus redatores, algo de semelhante às afeições de família. Jovem, porém, como o era eu então, com a consciência da minha fraqueza e a incerteza do futuro, devia, procurar sobretudo, um apoio, conselhos e exemplos nessa sociedade de cristãos inteligentes e laboriosos, muito feliz por neles haver encontrado amigos mais idosos, mesmo que se não dignassem considerar-me irmão. Não havia ai somente a impressão banal de estima que desperta no pensamento do leitor incipiente o nome de quem escreve. Havia também tendência sincera de minha pobre natureza que, pouco enérgica, tímida e incerta, procurava sempre encontrar algo que a elevasse. Não podeis calcular quanto, sem prejuízo do amor próprio, eu amo a sombra de alguém diante de mim. Soldado da segunda linha, necessito de que me cubra a primeira a fim de amparar-me.
A medida também que os claros se fazem na geração que nos precede, e que me encontro, face a face, em presença dos perigos da vida, sinto-me singularmente perturbado. Assim, deixou-me a perda de meus pais, além da ferida incurável da alma, uma singular sensação de solidão moral que o estimulo de meus amigos não consegue fazer que desapareça. Cercam-me, mas não me abrigam. E ainda, entre eles, mais me apego aos que, superiores em idade e eminentes em méritos, se me afiguram sustentáculos.
É, portanto, necessário para mim respeitar como estimar. E estes dois sentimentos muito bem por vezes se harmonizam para que a eles renuncie. Vedes, assim, (e começais talvez a excusar-me de por tanto tempo vos haver falado de mim mesmo) que não podereis recusar um direito de idade cujo reconhecimento constitui para mim um consolo a mais. Recusar em minhas cartas esse tom respeitoso que repelis tão severamente, seria constranger-me a falsear a posição natural de meu coração.
Aqueles que foram mencionados em vossa carta, Pericaud e outros, agradecem vossa obsequiosa lembrança.
A Faculdade de Letras, (1) contra à qual vos pondes em guarda, não merece em geral tal honra, não se podendo dizer que exerça uma verdadeira influência. Não lhe faltam talentos e inteligências, nem a boa vontade do público. O que é, porém, lamentável e que se não coaduna de modo algum, é a falta de unidade de doutrina, o positivo das crenças. O deão, Senhor Reynaud, do qual se encontra uma carta, se não me engano, no primeiro volume da Revue Européenne (2) é um católico ardoroso e esclarecido. Está só, porém, ou pouco falta para tanto, com indiferentes ou inimigos. Felicidade é que o auditório, muitas vezes, não compreenda senão pela metade, e que as damas cristãs saiam edificadas com as homilias panteístas de uns e das conferências ecléticas de outros. Ouve-se pronunciar a palavra sentimento religioso e faz-se o sinal da cruz ao sair como tendo acabado de ouvir o pregador em voga.
A propósito de pregador, não conheço mais corajoso e cavalheiro do que nosso caro e sábio Eugênio Boré (3). Será prazer para vós saber que a Obra da Propagação da Fé, não contente em conceder para a sua escola uma soma de seis mil francos já deu diversos passos que não serão infrutíferos. Depende, porém, a obra de que suas atividades permaneçam secretas até a publicação nos Annales. Nada prejudicaria tanto o nosso comum amigo do que a obsequiosidade desastrosa daqueles que publicam no Univers (4) até minúcias de sua correspondência mais íntima, às vezes mesmo para minha grande confusão.
Perdoai o desordenado destas duas páginas e a brusca interrupção que as termina. Vários membros da Sociedade de São Vicente de Paulo vieram palestrar em meu gabinete. São dez horas da noite e, amanhã, às cinco da madrugada, devo partir em viagem por alguns dias. Censurar-me-ia se a empreendesse antes de pagar minha dívida. Nenhuma fala-me tanto como esta ao coração.
Não sereis rigoroso e dar-me-eis prazo para melhor desempenhar-me. Fareis mais e adquirireis novos direitos sobre mim, concedendo-me um pensamento perante Deus nas próximas festividades. Aqui termino, guardando essa esperança, e vos peço crer na profunda e cordial afeição que vossa bondade me inspirou.
Vosso muito humilde e dedicado servo em N. S. J. C.
(1) Trata-se da Faculdade de Letras de Lyon. O deão, M. Reynaud, professava a literatura francesa. As demais cadeiras eram ocupadas por M. François (história), Demons (literatura antiga), Edgar Quinet (literatura estrangeira) e o cartesiano Francisco Boutilier (filosofia). É, evidentemente, a Quinet que se deve atribuir as “homilias panteístas”. Boutilier matizou sem dúvida de ecletismo, para seguir o impulso de Cousin, um cartesianismo que, mais tarde, se orienta para maiores negações. Haviam prometido a Ozanam a Cadeira de Quinet, se consentisse em permanecer em Lyon.
(2) Esta carta não foi mais encontrada.
(3) Eugênio Boré, nascido em Angers no dia 15 de Agosto de 1809, tomara parte no grupo de La Chesnaie. Por sugestão de Lamennais, estudou as línguas orientais. Encarregado, em 1837, de missão na Armênia e na Pérsia, foi eleito, em 1843, membro correspondente da Academia das inscrições e belas letras, e nomeado professor suplente de armênio no Colégio de França. Em 1850, ordenou-se sacerdote, voltando ao Oriente como membro da Congregação da Missão, da qual tornou-se superior geral. Faleceu em 1879. Cf. Léonce de la Rallaye, Eugêne Borê (Paris, Delhomme et Briguet, 1894), e Eugêne Borê, notícia biográfica, seguida de extratos de seu diário e correspondência, 1879.
(4) Estava então na Pérsia, Eugênio Boré. Lá havia ele fundado escolas que desejava, ardentemente, fossem mantidas pela Propagação da Fé. Em 26 de março de 1840, havia o Univers publicado o resumo de uma carta que dirigira a sua família. E, em 29, o resumo de outra carta, dirigido a Eugênio Taconet, proprietário do Univers, em que, agradecendo livros que havia recebido, assim escrevia: "Amo e admiro o trabalho de Ozanam sobre "Dante". E, mais adiante, fala de sua obra e do auxílio que espera. "Peço-te que unas tua voz à minha, conseguindo também o interesse do bom Ozanam, do qual me enviaste o belo trabalho sobre Dante. Ele faz parte do Conselho em Lyon e, bom católico como é, não deixará de pleitear a meu favor". A modéstia de Ozanam fugia a esses cumprimentos assim estampados em jornal. Sabe-se que era ele, então, o redator dos Anais de Propagação da Fé.
A correspondência assim travada, desde logo cessou. Achava-se Ozanam, bruscamente, sobrecarregado de ocupações e preocupações.
Vlctor Cousin, que sempre lhe testemunhara uma benevolência, tanto mais lisonjeira quanto desinteressada, era ministro da instrução pública. Desejava ele que Ozanam ocupasse uma cadeira na Faculdade de Letras, em Lyon ou Paris. Prometeu-lha, e para tanto o força a preparar-se à agregação de literatura, "Instituição nova, diz Ozanam, a cujo sucesso (Cousin) consagra uma dedicação de autor". Foi, em verdade, uma de suas inovações desde que ocupou o cargo de ministro.
As dificuldades do programa fazem desta preparação uma das mais rudes tarefas. Consagra-lhe Ozanam todo o tempo disponível, mas venceu-a e brilhantemente.
"Após longas provas, escreveu ele, fui nomeado o primeiro da agregação." Em consequência, foi-lhe oferecida a entrada imediata na Sorbonne, onde seria suplente de Fauriel na cadeira de literaturas comparadas.
Foi-lhe, assim, preciso instalar-se em Paris, onde pôde retomar contato com os amigos e com as obras que havia fundado. Em janeiro de 1841, inaugurou o curso que, desde logo, teve grande assistência. Afinal, em 23 de junho de 1841, em Lyon, esposou Amélia Soulacroix, filha do reitor da Universidade lionesa.
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Vide as cartas de
3.2 - 14 de setembro de 1841
3.3 - 23 de maio de 1842
3.4 - 4 de julho de 1842
3.5 - 21 de março de 1843
3.6 - 10 de abril de 1843
3.7 - 29 de maio de 1843
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