"Por
que procurais entre os mortos aquele que está vivo?"
Bem
inspirado pelo Céu andaram os que escolheram estas palavras do Evangelho para
ornar o túmulo de Frederico Ozanam.
Morrem
somente aqueles cujo nome se desfaz na memória da humanidade com as cinzas do
corpo. Mas, o do apóstolo da caridade refulge e se dilata com o tempo,
revivendo na lembrança da vida que levou, gravada nas páginas que legou ao
mundo e em cada novo soldado vicentino que se alista nas fileiras das legiões
da caridade.
Mais
de um século e meio faz que desapareceu ele ao olhar dos homens. Permanece-lhes,
porém, no coração pelo amor que irradiava do seu; imprimiu-se-lhes na mente
pelas luzes que se desprendiam da sua. Milhares de vicentinos, disseminados
pelo mundo, em todas as horas do dia, reunidos para a prática da caridade, que
tão ardorosamente lhes ensinou, repetem-lhe o nome e nele buscam a chama com
que possam aquecer o próprio coração e o coração dos pobres que ele lhes
confiou.
Dia
a dia se propaga a sublimidade de sua vida, os primores da inteligência com que
o prendou o Céu, o zelo de que se achava possuído para combater pela sua
Igreja, o sonho de fraternidade cristã que ambicionava implantar na terra, o
carinho com que procurava mitigar os sofrimentos da miséria, o desassombro com
que defendia a única solução verdadeira para os problemas sociais, a solução
que Leão XIII proclamou em uma das mais célebres de suas encíclicas.
Apesar
de se ter esquivado o mundo de seu tempo a seguir-lhe a voz, ela continua a
ressoar, clamando sem cessar por essa comunhão de princípios que deve regê-lo
para que se estabeleça a paz na terra: o consorcio da justiça e da caridade.
Nessa união reside o segredo da equação para a qual tantas soluções têm sido
propostas em vão. A justiça não poderá jamais reinar no mundo, se quiser reinar
sozinha. É preciso para que se possa ela exercer entre os homens, de maneira
benéfica, que esteja consorciada com a caridade. Aquela, sem estar ligada a
esta, e posta na mão dos homens, redundará, na prática, em instrumento cego das
paixões humanas, fomentando a luta de classes, as revoluções e a prepotência,
pois que será regulada pela concepção que cada um fizer, a seu bel prazer, do
que seja o direito, mirando-o à luz do próprio interesse. Amalgamando-se,
porém, com a caridade, transformar-se-á em instrumento sublime da paz pela
harmonia, em vez da luta, entre as classes sociais. No detentor do poder essa
união despertará o equilíbrio, nos homens a compreensão, o perdão nos
ofendidos, a honestidade nas ações, a liberalidade nos afortunados, a paciência
nos que esperam.
A
justiça é inflexível, a caridade tolerante; a justiça é cega, a caridade vê com
os olhos do coração; a justiça fere, a caridade cura o sofrimento.
Tudo
isto ensinou Ozanam, e as lições de ontem são ainda, e mais ainda, as de hoje.
Enquanto
não lhe derem ouvidos a essa voz, que se faz eco da voz do próprio Cristo, não
verá a humanidade a paz que ambiciona, e caminhará para a ruína, dizimando-se
nos campos de batalha, ou perdendo o melhor de suas fôrças na esterilidade das
revoluções.
Mas,
tanto que se não extinguirem vozes como a de Ozanam, ainda restará ao mundo a
doçura de uma esperança e a força para levar avante a sublimidade da doutrina
que pregou, e, com ela, a paz entre os homens.
*
* *
"Como
poderei ter medo de Deus se o amo tanto!"
Felizes
daqueles que puderem, como Frederico Ozanam, assim se despedir do mundo para
reencetar a vida na plenitude de Deus! Por que, na verdade, recear a morte se
esta é tão somente o início da verdadeira vida em Cristo, para a qual passamos
a viver na terra?
Como
temer o encontro de um ente que constituiu o objeto maior de nosso amor? É
assim que sucede na terra quando se avizinha o momento de nos avistarmos com um
ente querido?
Verdade
é que, por fraqueza ou ignorância, muitas vezes nos esquecemos da verdadeira
finalidade de nosso destino, e nos apegamos ao que é fugaz e até nocivo a esse
objetivo supremo da existência do homem na terra.
Era
essa noção da pequenez do homem, ante a finalidade sublime a que Deus o
destinou, que fazia os lábios trêmulos de Ozanam proferirem, na voz que se
apagava:
"Meu
Deus! meu Deus tende piedade de mim"!
Esta
exclamação brotava, porém, de uma alma que sentia toda a distância que separa o
ser humano de um Deus. Era o reconhecimento da própria fragilidade ante a
grandeza de Quem o criara; era a súplica de quem se reconhecia indigno da
imensidade do amor divino, apesar do amor que Lhe retribuía como homem, mas tão
distante daquele de que era alvo; era a compreensão que se tornava nítida em
sua alma, nesse momento em que toda a sua vida parecia sintetizar-se em sua morte,
de que mais ainda devia ter feito, não obstante o muito que fizera, para
corresponder à missão que Deus lhe confiara.
Não
era, pois, temor que lhe arrancava do peito esta súplica, mas a humildade que,
a par de seu amor, lhe ornava o coração.
Não
era temor, pois ele bem sabia que o amor e a justiça divina seriam o escudo a
que se abrigaria sua fraqueza: amor tão intenso à humanidade que originou o
maior dos milagres, a incarnação de um Deus na pessoa divina de um Cristo; justiça
que por ser de um Deus não poderia deixar de ter em conta a fragilidade do
homem, apesar de sua liberdade. Ele não julgava que a esse amor se viesse
contrapor a justiça, para julgar o homem com a implacabilidade da justiça
humana.
A
justiça em Deus, não se apartando n'Ele do amor, ao pronunciar-se sobre as
ações humanas, haveria de pesar a contingência natural do homem. Não seriam os
homens em relação a Deus, assim como crianças em relação a um pai amoroso, que
perdoaria por um sorriso de carinho do filho pequenino a falta cometida, desde
que lhe divisasse no olhar a mágoa de o haver molestado?
Era
esta compreensão do juízo de Deus que lhe inundava o coração de suavidade ao
despedir-se da vida.
Quando
já o mal que lhe minava as fôrças o levara à Itália, em busca de lenitivo,
estava ele um dia a contemplar a tarde que caía enquanto o sol parecia engolfar-se
ao longe no mar. Notou sua esposa que um sorriso lhe pairava nos lábios e que
seu sembrante se revestia de imensa doçura. Carinhosamente, então, lhe
perguntou: Qual o dom de Deus reputava ele o maior? E Ozanam, revelando o que
sentia, sem hesitar lhe respondeu: “a paz do coração".
Não
o assaltava, pois, o receio de comparecer ao tribunal do seu divino julgador;
antes, era a tranquilidade de quem sente no juiz o peso do amor.
Ao
regressar à França, onde queria repousar, por lá tanto haver trabalhado, pediu
à esposa que com ele bendissesse a Deus pelas dores que havia sofrido,
acrescentando:
“Eu
O bendigo também pelas consolações que me concedeu".
Tudo
lhe vinha desse Deus em que depositava a segurança do sua fé e a ternura de seu
amor, dele aceitando, e ainda o bendizendo, os espinhos e as flores com que lhe
juncara o caminho.
Em
seu testamento, referindo-se àqueles que haviam sido os companheiros de sua
obra em beneficio da humanidade sofredora, despedia-se deles, num convite para
o Céu, e na promessa de sua assistência:
"Espero
firmemente que não nos separaremos para sempre, porque eu ficarei convosco até
irdes para mim".
Seja,
pois, a aspiração maior de um vicentino, não faltar à reunião que lhe aprazou
no Céu o fundador de sua Sociedade, e sua prece seja a exclamação de
Lacordaire:
"Senhor,
fazei que sejamos como Ozanam!"
E,
enquanto houver um vicentino na terra, Ozanam não morrerá.
CFD. JOÃO
PEDREIRA DUPRAT
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