Vencer com os Pobres, protagonistas da História
A destruição dos Pobres
Vivemos em tempos difíceis. A pessoa humana está sendo destruída. Nesse processo, os mais prejudicados são os Pobres. São eles os mais vulneráveis; estão, visivelmente, sendo destruídos. A pobreza enquanto "miséria", isto é, a carência de bens de sustentação que humilha a pessoa humana, comprometendo-lhe a sua dignidade e impedindo o exercício da liberdade, constitui um dos problemas mais dramáticos do mundo contemporâneo. Os Pobres sofrem as mais temíveis ameaças e, entre elas, o direito à própria vida. A vida é ameaçada. Vivemos numa cultura de morte. Esse fenômeno sempre existiu, mas na atualidade ele tornou-se agudo e comprometedor. Primeiro, porque os valores do senso comum não mais existem ou, quando estão presentes, estão orientados ao consumo e ao prazer e não à vida plena. Depois, pelo simples fato de que vivemos num sistema provocador de exclusão jamais visto anteriormente. O neoliberalismo é uma "fábrica" de excluídos e marginalizados.
As conseqüências imediatas são, como se pode ver, a multiplicidade de formas com que a vida é banalizada: violência, fome, desemprego, doença, analfabetismo, corrupção, miséria...
A pobreza e a exclusão social não são uma fatalidade, mas antes, é o resultado de um mundo injusto e desigual. É preciso ir as raízes dos problemas sociais. É necessário detectar as causas geradoras de tamanha pobreza e miséria. Muitos reconhecem que é necessário fazer um trabalho numa base interpessoal e direta, junto do Pobre e do excluído. Outros verificam que enxugar o chão, se bem que necessário, não basta para estancar uma torneira aberta. Em outras palavras, essas pessoas entendem a pobreza como um problema que reclama apoio pessoal para socorrer as carências pessoais e imediatas, mas, cujas causas só podem ser removidas modificando os fatores econômicos, sociais culturais que geram os mecanismos de perpetuação da pobreza.
Esse pensamento não é nada recente e inovador. Frederico Ozanam tinha presente a necessidade de tomar ações sistêmicas de combate à pobreza e à miséria. Buscar as causas geradoras das desigualdades sociais. Dizia: "E muito pouco aliviar o Pobre no dia-a-dia; é necessário pôr as mãos nas raízes do mal e, com eficientes reformas, diminuir as causas reais da miséria pública". Ou ainda: ''A caridade não basta. Ela trata as feridas, mas não os golpes que as ocasionam. A caridade é o samaritano que derrama azeite sobre as feridas do caminhante que foi atacado. O papel da justiça é prevenir os ataques" (Frederico Ozanam, Carta de 30 de abril de 1848).
Mudanças de estruturas
Muitas vezes as ações direcionam-se sobre as conseqüências. As causas ficam esqueci- das. Nesse sentido, muitos se conformam com o dizer de Jesus Cristo: "Pobres sempre os tereis". Pode-se dizer que Jesus dizia isso não como justificativa da pobreza no mundo mas que falava da falta de compromisso a respeito dos valores humanos e dos valores do Evangelho. "Pobres sempre os tereis" porque as vossas preocupações estão fora de foco. Não se ocupam com o essencial. "Pobres sempre os tereis" porque sempre haverá falta de solidariedade e de amor para com o próximo por causa do individualismo e da busca dos interesses meramente pessoais. Ir às raízes da injustiça e procurar erradicar a cultura de morte existente nos grupos sociais é a melhor opção que se pode fazer para diminuir o sofrimento de tantas pessoas que vivem acuadas nos labirintos do submundo. Isso é mudança de estrutura.
No seguimento de Vicente de Paulo, o cristão vicentino deve ir ao encontro das necessidades pessoais dos Pobres, nossos irmãos em Jesus Cristo, e, ao mesmo tempo, à luz dos princípios evangélicos, deve tentar reformar as estruturas sociais injustas, para não perpetuar ou esconder as causas da pobreza. Isto significa que devemos ter "um coração caridoso junto com uma consciência social". As injustiças tomam aspecto estrutural. Parece normal aos olhos do sistema a abundância de alguns e a miséria da grande maioria. A abundância aumenta a desigualdade. Isso é estrutural e é preciso que essas estruturas sejam mudadas. Dar migalhas aos Pobres ou fazer com que vivam na marginalidade parece normal. Esta concepção carece também de mudanças. O combate às mais variadas formas de miséria e pobreza não deve ser feito apenas com sobras ou gestos de generosidade esporádica.
As causas da pobreza e da exclusão social só podem ser eliminadas modificando os fatores econômicos, sociais e culturais que geram e perpetuam as condições favoráveis a elas. Alguns aspectos são de relevante valor para a eliminação da pobreza: levar em conta a absoluta prioridade da dignidade da pessoa humana e a consciência de que os bens que a humanidade possui são de todos e devem ser postos ao serviço de todos; os Pobres não podem ser só um problema ou um dado estatístico; a descoberta da pessoa humana como sendo "o próximo", e que motivará uma atitude inadiável da partilha; a vida concebida como um profundo caminho espiritual, cujo sentido reside na busca do bem e do amor; a consciência de que a luta contra a pobreza é uma luta contra todos os egoísmos; e a coragem de cada um reconhecer a sua parte de responsabilidade nesta situação do mundo de miséria em que se vive.
Os Pobres são os protagonistas da História
Vencer com os Pobres é respeitá-los como protagonistas da história. Os Pobres não devem ser tratados como "objeto" no contexto das mudanças sociais. No combate à pobreza e à miséria, os Pobres são sujeitos e atores sociais, promotores de uma cidadania ativa e crítica, capazes de promover processos de empoderamento dos excluídos da cidadania.
Não se deve e nem se pode subestimar ou menosprezar os Pobres e famintos. Vencer com os Pobres significa considerá-los como protagonistas de sua própria libertação. É tratá-los como seres humanos com inteligência, capacidade criativa, com desejo de ser feliz e capacidade de governar seu próprio destino.
Vencer com os Pobres é tomar parte dos conflitos estruturalmente produzidos pelo anti-projeto do Reino, o capitalismo neo-liberal. Esses conflitos têm o rosto humano concreto das vítimas (Puebla 31-41). Não basta condenar abusos do capitalismo neo-liberal ou querer humanizá-Io. Ele representa o anti-projeto. O anti-projeto é o reino do pão não partilhado, do poder que não se configura como serviço, do privilégio que favorece a acumulação e do prestígio que organiza eventos de ostentação em vez de articular processos de transformação.
Vencer com os Pobres é dar a Eles a oportunidade de serem protagonistas da história da sociedade; é ler a história a partir da ótica dos "vencidos" e não a partir da história dos "vencedores". A Sociedade de São Vicente de Paulo deve tomar uma atitude de uma espiritualidade simplista, mas irradiar uma atitude que manifeste um modo de ser e de agir, uma maneira diferente de ver o mundo, um programa de ação que diz respeito ao homem total - alma e corpo - e o abre às exigências fundamentais do contexto socioeconômico em que vivem os Pobres, encaminhando-os a Deus.
Atitude vicentina
Frente aos grande desafios impostos no processo de destruição dos Pobres, a espiritualidade vicentina deve tomar seu verdadeiro lugar, com urgência. É preciso colocar-se ao lado dos Pobres para vencer com eles. Os Pobres vencem quando sua dignidade é alcançada, quando suas necessidades são atendidas. Vencer com os Pobres significa caminhar com eles rumo aos objetivos comuns a todos, dentro de uma cidadania plena.
Em primeiro lugar, isto se faz pelo trabalho pessoal na visita feita ao Pobre. É no Pobre que visivelmente Deus se faz presente. Para vencer com os Pobres é preciso considerar que a visita é o meio eficaz para o diálogo e a co-participação no caminhar rumo à plena realização da cidadania e das promessas do Reino de Deus. E a visita que torna visível o testemunho que se dá de Deus e da solidariedade para com os Pobres. É na visita que se pode alimentar a esperança, para que os Pobres conscientizados acerca de sua dignidade, como sujeitos humanos e cidadãos cônscios de seus direitos e deveres, sejam organizados numa grande rede em defesa da justiça frente aos detentores do poder opressor e excludente. Reconhecer o outro pobre em sua dignidade e alteridade significa inclusão e participação. É na visita que, aos poucos, por meio da participação dialógica, o Pobre assistido pelas Conferências passa a ser protagonista de sua história deixando de ser vítima passiva dos meros interesses paternalistas e individuais.
Em segundo lugar, a espiritualidade vicentina, por ser uma espiritualidade de ação, procura despertar um olhar de misericórdia para aqueles que não possuem as mínimas condições de se levantarem por si mesmos. Como o Bom Samaritano que "derrama azeite nas feridas do viajante que foi atacado" procura ter compaixão do Pobre sofredor, vendo nele, a imagem do próprio Deus. Ser misericordioso é expressão da partilha dos bens e no dom de si; quem vive em comunidade socorre quem passa necessidade e coloca-se ele mesmo a serviço. É contribuir para que as estruturas injustas e ameaçadoras sejam mudadas e que estruturas de amor e de misericórdia possam ser o distintivo do testemunho de vida da fé cristã. Dizer, enfim, como Frederico Ozanam: "Não tenha medo de novos princípios. Seja criativo. Seja inventivo. Organize novas obras de Caridade no serviço ao Pobre. Você que tem energia, que tem entusiasmo, que quer fazer algo valioso para o futuro, seja inventivo, atire-se, não espere".
Pe. Mizaél Donizetti Pugioli, CM
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