O padre Anselmo era um Vigário zeloso. Convencido de que o
melhor meio de ser recebido nas casas dos enfermos quando procurasse
ministrar-lhes os últimos Sacramentos, era procurá-los quando em saúde fazia
questão de visitar todos os paroquianos dignos de sua visita, ao menos anualmente; e,
todas as vezes que havia um motivo de intenso jubilo ou de grande tristeza numa
casa da vila, já se sabia, o Padre Anselmo havia de aparecer para partilhar da
alegria ou consolar na amargura. Também o Padre Anselmo era querido por todos
os seus paroquianos que o consideravam o modelo dos vigários.
Sempre de bom humor, suportava as maiores amolações
sem se alterar. O nosso vigário supunha não haver ovelha em seu rebanho
que ele não conhecesse, nem casa em que não houvesse entrado; pois o nosso amigo estava enganado.
Uma noite,
escura como poucas, caia uma chuvinha fria e
miúda, daquelas que povo diz que molham até a alma. O nosso herói dormia como um bem-aventurado o sono calmo da boa consciência.
Antes de deitar-se, depois de terminar a recitação do
Breviário, ao fazer a oração da
noite, minucioso e escrupuloso exame de consciência assegurara-lhe de que bem havia ganho o seu dia. Entregara-se por isso
despreocupadamente ao repouso bem merecido após um dia de serviço exaustivo.
No melhor do sono, desperta o Sr. Vigário com um batido de dedos nos vidros da janela do quarto.
- Pronto grita logo, que há?
- Sr. Padre,
um paroquiano seu, em perigo de vida, pede com
urgência os Sacramentos.
- Vossa reverendíssima não o conhece..., é o
Chico da Candinha.
- De fato, pelo nome não conheço. Onde mora?
- O lugar não tem nome. Numa cafúa (cafundó) dentro de uma grota daqui a uma légua. É na fazenda do José Eugênio.
- Quem veio chamar-me? Quem é você?
- Um vicentino.
O Padre
pôs-se a pensar um momento. Não será alguma cilada? Ele não conhecia o Chico da
Candinha, não conhecia cafúa alguma em grota da fazenda do José Eugênio, que no
entanto visitara tantas vezes... O vigário
quis duvidar; mas, e o dever?
- Diga ao
menos seu nome.
- Eu me
chamo Eugênio, o fogueteiro; mas quem está aqui é apenas o confrade de S. Vicente.
- Ah!
bem, Eugênio. Eu já vou; mas, como obter animais a esta
hora? Porque é preciso
você ir comigo, porque eu não conheço a
casa.
- Eu
tenho animal para o senhor, e é preciso que eu vá
a pé,
guiando, porque o caminho é péssimo.
O Vigário
maravilhou-se. E orou, dizendo do fundo do seu coração:
Graças,
meu Deus. Graças, meu Deus, pela fé viva e pela
caridade ardente que concedeis a estes modestos vicentinos, dons que os grandes
do mundo desconhecem.
E
enquanto assim pensava em voz alta e raciocinava, o Vigário
vestira a batina e a capa, pusera um cachecol, calçara
as botas e pusera o chapéu sobre a cabeça. Tomou as
chaves da Matriz, ali ao lado, e saiu.
-
Eugênio, o doente pode comungar?
- Pode,
sim, senhor.
Foram os
dois á Igreja. O Padre abriu o Sacrário, tirou uma Partícula Consagrada que
colocou no Relicário que suspendeu ao pescoço; tomou a caixinha dos Santos
Óleos e os dois saíram.
O Padre
montou a cavalo e, lá foi Eugênio a pé, a frente, para
indicar o caminho.
A noite
estava horrível, um ventinho frio e penetrante, chuva miúda e constante,
escuridão completa. Parecia incrível que não se perdessem.
No
entanto, lá vão os dois a subir e a descer morros, seguindo trilhas que pessoas
pouco conhecedoras, se perderiam em pleno dia. Durava a caminhada, quase hora e
meia, quando Eugênio disse:
- Graças a Deus estamos chegando.
O Padre
já confessava a si mesmo que nenhuma noção
tinha do
lugar em que se achava. Mais uns 5 minutos e Eugênio convidou o Vigário a
apear-se e o levou uns 30 passos mais, á porta de miserável cafúa.
Entraram. Uma
fogueira extinguia-se no meio do cômodo único, Eugênio lhe lançou um pouco de
capim seco para lhe avivar as chamas. Estas elevaram-se e permitiram ao Vigário
ver, deitado em grosseiro colchão em um canto, um pobre homem a
respirar penosamente .
- Aí está o senhor Vigário, Chico, disse-lhe Eugênio com voz alta e
acrescentou
- Ele está meio surdo, senhor Padre.
- Graças
a Deus, o senhor Padre veio... disse o Chico
Eugênio
retirou-se da cafúa para deixar o doente confessar-se. No fim de algum tempo, o
Vigário chamou-o para ajudá-lo a ministrar o Sagrado Viático e a Extrema-Unção.
Foi acesa uma vela de cera que viera na malinha de mão e ali,
naquela solidão, ao murmúrio do córrego próximo, o Senhor Deus do Céu e da
Terra penetrou num coração regenerado pelo Sacramento da Penitência para ser o
sustentáculo daquela alma nos últimos embates da vida terrena. Em seguida
recebeu o enfermo piedosamente a Extrema-Unção.
Durante
uma hora, permaneceu o Sacerdote, confortando aquele seu filho moribundo e
admirando a Misericórdia Divina que tais carinhos dispensa aos pobres
desprezados pelo mundo.
- Agora,
disse o Vigário, preciso voltar para chegar a tempo de dar a Comunhão ás 6
horas na Matriz.
- Eu vou
acompanha-lo, senhor Vigário.
- Não é
preciso, senhor Eugênio, eu acertarei o caminho e você não pode deixar o doente
só.
- Eu
levarei o senhor até a estrada no alto do morro e volto. E assim fez.
O Vigário
ficou edificadíssimo com a caridade extraordinária de Eugênio.No
domingo seguinte foi assistir a reunião da Conferência para narrar o fato e dar
os parabéns aos confrades pelo zelo por eles manifestado em favor das almas.
Narrando
este fato ao Presidente do Conselho Central, ele acrescentou :
- Desde
este dia, meu amigo, eu passei a respeitar os vicentinos. De uma só vez, Eugênio
deu-me duas, lições: 1º - tirou-me a vaidade de dizer, que eu, conhecia todos
os meus paroquianos, mostrando que eu desconhecia, num dado momento, aquele que
mais precisava de mim; 2º- mostrou-me a importância da Sociedade de São Vicente
de Paulo que me ajudava a desempenhar a minha missão de salvar almas, enquanto
eu dormia a sono solto em cama confortável, em quarto quente e lá fora chovia,
ventava e fazia frio. Sim senhor, daí por diante amo a Sociedade de São Vicente
de Paulo, e considero os confrades os meus coadjuvantes leigos.
Fim
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