TREZENTOS anos atrás, naquela França terrivelmente convulsionada pela ambição dos
príncipes e pelas guerras de religião, o jovem Vicente de Paulo achou o seu
campo de batalha. Grandes eram a miséria, o sofrimento, a ignorância do
povo. Essa ignorância, especialmente em matéria de fé, foi o que primeiro
impressionou o Padre de-Paul. Era ele então preceptor na casa nobre de
Gondi, quando iniciou uma espécie nova de missões - que se poderiam chamar
de missões suburbanas. Nada de embarcar para terras de Ásia e África -
bastava andar uma légua e encontraria gentes tão distantes de Deus quanto
os pagãos amarelos ou negros. Ensino de catecismo, prédicas singelas - e
dessas pequenas missões nasceu a grande congregação missionária dos
Lazaristas, que se espalharam mais tarde pelo mundo todo. em 27 de setembro de 1660, morria em
Paris um ancião. Camponês de nascimento, pastor na sua infância,
prisioneiro de piratas e cativo de um alquimista árabe nos seus vinte anos,
padre, postulante em Roma, confidente de S. Francisco de Sales e Santa
Joana de Chantal, discípulo do Cardeal de Bérulle, preceptor daquele que
foi depois o demoníaco e aventureiro Cardeal de Retz, esmoler da Rainha
Margot, confessor “in
extremis” de
Luiz XIII, diretor espiritual de Ana d’Áustria (diz-se que foi ele o celebrante do falado casamento
secreto da Rainha com Mazarino), esmoler-geral das galeras do Rei,
intermediário de paz nas lutas da Fronda, fundador das congregações dos
Lazaristas e das Irmãs de Caridade - chamou-se em vida Vincent-de-Paul. É o
nosso São Vicente de Paulo. Mas, nos altares onde subiu, não é representado
junto a reis nem rainhas - mas como um padre velho que abriga sob a capa
duas crianças desvalidas. Pois o que fez um santo do camponês de-Paul, não
foi a convivência dos grandes - foi a sua heroica virtude da caridade.
Depois o cura de-Paul voltou os seus olhos para os problemas
de mendicância e para os enfermos desamparados. Inventou então as
sociedades das Senhoras de Caridade - damas da sociedade, fidalgas e
burguesas (entre elas contou Maria de Gonzaga que depois foi Rainha da
Polônia), que deveriam pessoalmente ir levar recursos e assistência aos
necessitados. Quase todas as grandes damas do tempo formaram ao seu lado;
mas apesar de tão altas protetoras, cujos recursos materiais e políticos
garantiam a extensão e sobrevivência da obra, o santo verificou que a
caridade das duquesas e princesas padecem de um vício básico: o próprio
fato de continuarem as Senhoras de Caridade a serem grandes damas. Chocou-o
profundamente saber, por exemplo, que as ilustres congregadas, nas suas
visitas aos pobres, não se baixavam a levar pessoalmente as esmolas de
virtualhas e roupas: mandavam em seu lugar as criadas. E S. Vicente não
queria uma caridade por procuração, mas caridade direta, de mão para mão,
uma caridade corpo-a-corpo, se o ouso dizer. A ferida que se lava e se
cura, a cama suja que se troca, a fome a que se acode cozinhando na própria
cabana do pobrezinho a sopa e o mingau.
Foi dessa necessidade que nasceu a grande revolução vicentina.
Um novo tipo de comunidade religiosa, cuja direção foi entregue à famosa “Mille Le Gras”, ou seja, a nossa Luiza de
Marillac. Até então a vocação religiosa feminina só conhecia um caminho: a
contemplação e o claustro. S. Vicente descobriu uma fórmula inédita: nada
de freiras emparedadas em conventos, cuidando apenas da sua alma. As suas
seriam militantes, praticando a caridade com as próprias mãos. "...que elas não tenham ordinariamente
por mosteiro senão as casas dos doentes; por cela, um quarto de aluguel;
por capela, a igreja da paróquia; por claustro, as ruas da cidade e as
salas dos hospitais; por clausura, a obediência; por grades, o temor de
Deus; por véu, a santa modéstia." É essa a regra básica
das Irmãs de Caridade, ou filhas de S.Vicente. Donzelas de virtude
intocada, criadas na abastança, fidalgas, burguesas e filhas do povo - em
toda parte seriam recrutadas. S.Vicente lhes acenava com uma vocação
diferente, que na época quase chegou a causar escândalo. Não as vestia de
freiras, e o trajo que ainda hoje usam as Irmãs de Caridade, é a roupa
comum às mulheres do povo naquele tempo: - por sobre o camisolão de linho
branco, saia e casaco de lã grosseira, um grande avental; à cabeça a touca
engomada, como abrigo e como recato.
Há, na santidade de Vicente de Paulo um elemento que o
aproxima especialmente de nós, no nosso século tumultuoso. É a sua condição
de ativista, de homem atuante, de operário de Deus, que enfrenta o mal
pegando-o pelos chifres, em vez de apenas o exorcizar. Com a sua energia de
camponês, o seu bom senso popular, fez da caridade uma tarefa do corpo,
além de uma exaltação da alma. S. Vicente é um santo que a gente entende,
e, como o entende, ama-o melhor que aos outros, os que sobem às altas
esferas da doutrina e do misticismo. S. Vicente, contemporâneo de Richelieu
e de Luiz XIV, soube ensinar a um mundo ofuscado por esses dois que foram o
alfa e o ômega do Grande Século, que além da grandeza política, além do
orgulho nacional, além do poder e da pompa de Rei, existe uma glória maior,
mais duradoura: a glória humilde de servir, de enxugar lágrimas e sarar
dores.
Trezentos anos se passaram. De Richelieu e Luiz, o Sol, que
resta? Pedras mortas, páginas de livros. Mas a obra de Vicente de Paulo
está aí, viva, palpitante, eterna, maior ainda que em vida do santo,
multiplicada muitas vezes. Não há lugar perdido no Mundo, na Europa, na
Ásia, na África, na América ou na Oceania, que não apareça nos mapas da
caridade como parte de uma província Vicentina. Hospitais, orfanatos,
escolas, asilos - qualquer forma de caridade elas revestem.
E já temos como certo, quando começarem as viagens
interplanetárias, assim que se criarem as primeiras colônias terrestres em
Marte, na Lua, na Alfa do Centauro - onde quer que se fixe o homem pelos
céus além, logo há de aparecer por lá uma corneta branca de Irmã de
Caridade, a fundar um hospital para aborígines siderais, a alimentar e
assistir orfãozinhos e desvalidos do planeta novo....
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