1º DOMNGO DO ADVENTO

Marcos 13,33 – 37

Ficai de sobreaviso, vigiai; porque não sabeis quando será o tempo. Será como um homem que, partindo de uma viagem, deixa a sua casa e delega sua autoridade aos seus servos, indicando o trabalho de cada um, e manda ao porteiro que vigie. Vigiai, pois, visto que não sabeis quando o senhor da casa voltará, se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã, para que vindo de repente, não vos encontre dormindo. O que vos digo, digo a todos: vigiai!

Comentário

Já é hora de acordar! Eis o apelo de Jesus no Evangelho que inaugura este tempo do Advento. Uma nova aurora surge no horizonte da humanidade, trazendo a esperança de um novo tempo de um mundo renovado pela força do Evangelho. Neste tempo de graça, somos convocados a sair do torpor de uma prática religiosa inócua, a acordar do sono dos nossos projetos pessoais vazios e egoístas. Despertos e vigilantes, somos convidados a abraçar o projeto de Deus que vem ao nosso encontro, na espera fecunda do Tempo do Advento, temos a chance de reanimarmos em nós e os compromissos assumidos em favor da construção do Reino, reavivando as forças adormecidas, para a construção de uma humanidade nova, livre das trevas do sofrimento, da marginalização e da morte.

Frei Sandro Roberto da Costa, OFM - Petrópolis/RJ

2º DOMINGO DO ADVENTO

Marcos 1,1 – 8

Conforme está escrito no Profeta Isaias: Eis que envio meu anjo diante de ti: Ele preparará teu caminho. Uma voz clama no deserto: Traçai o caminho do Senhor, aplainai suas veredas (Mt 3,1); Is 40,3). João Batista apareceu no deserto e pregava um batismo de conversão para a remissão dos pecados. E saiam para ir ter com ele toda a Judéia, toda Jerusalém, confessando os seus pecados. João andava vestido de pelo de carneiro e trazia um cinto de couro em volta dos rins, e alimentava-se de gafanhotos e mel Sivestre. Ele pôs-se a proclamar: “depois de mim vem outro mais poderoso do que eu, ante o qual não sou digno de me prostrar para desatar-lhe a correia do calçado. Eu vos batizei com água; ele, porém, vos batizará no Espírito Santo”.

Comentário

“Preparai o caminho do Senhor, aplainai as suas veredas”. Clamando pelo deserto, João Batista nos indica que procurar viver conforme a Boa-Nova que Jesus nos trouxe não se trata, simplesmente, de viver dentro de um sistema religioso com certas práticas que nos identificam com tais. Talvez ele queira nos indicar que a fé, antes de tudo é um percurso, uma caminhada, onde podemos encontrar momentos fáceis e difíceis, dúvidas e interrogações, avanços e retrocessos, entusiasmo e disposição, mas também cansaço e fadiga. No entanto, o mais importante é que nunca deixemos de caminhar, pois o caminho se faz caminhando. Boa caminhada de Advento e preparação!

Frei Diego Atalino de Melo

terça-feira, 17 de setembro de 2019

4. CARTA DE OZANAM DE 22/12/1840 A AMÉLIA SOULACROIX






CARTA A SENHORITA SOULACROIX 

PARIS, 22 DE DEZEMBRO DE 1840

Menina Amélia Soulacroix


No  momento  de  iniciar,  sob  os  auspícios  da  Senhora sua mãe, esta 
correspondência destinada a consolar as agruras do meu exílio, sinto-me invadido por uma doce emoção. Não consigo, apesar disso, escapar a um respeitoso embaraço, idêntico ao que senti durante as primeiras visitas que lhe fiz. Tento sossegar-me na esperança de que a sua indulgência para as minhas cartas seja igual à que teve para com a minha pessoa. Seja-me assim permitido dar continuidade, nestas páginas familiares, à intimidade dos nossos últimos encontros. Terá que ter paciência para comigo, se eu  vier a desabafar consigo, dando-lhe conta dos meus pensamentos. Será uma boa maneira de me conhecer melhor, mas pode vir a acontecer que, por isso, eu venha a ficar diminuído a seus olhos. Por outro lado terei a vantagem da minha completa franqueza, ganhando assim espaço na sua confiança. As nossas relações epistolares serão tanto mais atraentes quanto mais sejam marcadas por esta simplicidade que ambos apreciamos e que eu admiro muito particularmente na sua pessoa, simplicidade essa que em si convive com tantos méritos e graças.

Passaram já nove dias em que por esta mesma hora estava consigo para para me despedir de forma longa e dolorosa. O encanto da sua presença esses curtos instantes, não foi mesmo assim suficiente para dissipara tristeza antecipada de uma próxima ausência. Saiu-me na altura um atropelo descontrolado de palavras de que depois me arrependi. Espero poder contar com a sua compreensão para esta fraqueza em tal circunstância. A nossa separação ser-me-ia menos dolorosa se não me tivesse apegado tanto à sua pessoa. Não é necessário descrever-lhe o conteúdo dos meus pensamentos durante os sombrios dias da viagem: É que depois dos fins de tarde passados junto de si, eu começava logo a contar as horas até ao encontro do dia seguinte. Nesta penosa jornada ia assim vendo esta separação alongar-se pelas cem léguas que nos separam agora e mais ainda perante a perspectiva desta dura prova que serão estes seis meses previstos para a nossa separação. Nestas circunstâncias, deixo-me abater perante estas penosas perspectivas, e só me resta refugiar-me nas minhas recordações, as quais me conduzem pelos caminhos bem conhecidos a uma casa de que aprecio muito a hospitalidade de uma família que fez renascer de novo em mim, sentimentos filiais. Encontro assim com facilidade o lugar favorito que me permitiram ocupar, ouvindo as melodias comoventes que mãos hábeis arrancavam ao piano. Ou então ouço o som de uma querida voz de que saíam as suas ternas e encorajadoras palavras. De todas essas palavras recordo especialmente
aquelas que pronunciou, cheias de nobreza e bondade, no  dia em que o seu consentimento foi decisivo para a minha felicidade. A memória des- se momento solene enche então o meu espírito e como que preencha   o
vazio da solidão, quase conseguindo  anular  as  horas  e  a distância, na
certeza que o futuro resgatará  todos os  problemas  do  presente. Hoje,
nesta vida nova que o destino me reservou, entre a agitação da chegada
e as necessidades deste início,  uma sensação nova se   me impôs. É que
deixei de estar sozinho. Escapo  assim àquele   sentimento de me fechar
sobre mim mesmo, a este egoísmo involuntário   a  que está  condenado
todo o ser humano quando não se encontra rodeado por afetos sagrados.


É necessário ter no âmago de nós próprios um centro de referência que
influencie toda a nossa vontade. É preciso um altar onde se imolem todas as alegrias e todas as dores. É também preciso uma imagem adorada, aos pés da qual se possa consagrar toda uma existência. Se esse altar estivesse vazio acabaria sempre por se colocar lá a própria imagem, apenas para se viver fechado sobre si próprio. Estou salvo desse perigo. Uma figura angélica veio tomar posse deste santuário do coração. Aí é o seu reino impondo-se como ponto central visível de todos os ângulos. Nunca se perdendo de vista não deixa também de tudo nos lembrar, já que não se sobrepõe nem a obrigações nem ao trabalho, antes os comandando e inspirando.Tenho por isso mais coragem para o esforço necessário e mais confiança no sucesso. É como a estrela do navegante, não só não o distrai do seu caminho, como antes o guia.Às vezes esta feliz mudança no meu destino, parece-me tão maravilhosa que temo que tudo não passe de um sonho.E então que no retiro discreto do meu  quarto tiro  do peito  a joia  que  me ofereceu  no dia da minha partida e abrindo-a contemplo o anel de cabelo ali fechado. A minha imaginação rapidamente me devolve a visão da encantadora cabeça de onde foi cortado e que toda é um sorriso para mim. Ao mesmo tempo, como que volto a sentir a doçura da mão que me foi permitido tomar... E quando os meus lábios respeitosos pousam apenas no medalhão, ao menos fico com a certeza que ali tenho o testemunho que me confirma que não é nenhuma ilusão sonhada  e que 
se bem que não tenha outra solução que não seja esperar, ali tenho a garantia dada pelos seus pais e por Deus de um direito entre todos o mais belo, o direito de amar.

Os mesmos pensamentos que assim animam o meu íntimo, também influenciam o exterior, fazendo-me aparecer  as coisas externas sob um
aspecto diferente. Paris, onde cinco anos de estadia tinham extinto a minha curiosidade de visitante, como que se reveste de novo de forma a
despertar a minha curiosidade de recém-chegado. Os monumentos diante dos quais passava indiferente sem desviar o olhar, interessam-me agora como se neles tivesse descoberto belezas que antes me passavam desapercebidas. Domingo passado ao passear a minha prima nas galerias do Louvre, parecia-me que os quadros dos grandes mestres eram vistos por meus olhos com cores mais vivas que antes. Há já quem tenha ficado admirado por eu, leigo na matéria, me interessar pelas maravilhas musicais dos artistas de renome. Agora, ao percorrer as ruas mais tranquilas e limpas da cidade, enquadradas por graciosos jardins, os meus olhos procuram sempre uma casa com escritos a pensar numa próxima locação. Cada um dos meus passos é acompanhado por uma recordação. 

Hoje eu  vivo  na  esperança  de amanhã poder  mostrar  e  preparo com antecipação o prazer das alegrias partilhadas. Já antecipo as surpresas da amável viajante, prevejo as suas impressões e diviso os seus traços em todos os lados. Minha cara, a sua mãe lhe dirá o quanto o seu nome
me valeu junto  da  senhora  Tranchant e  do  Senhor  Péclet. E há mais: sem  sem ter escrito uma só palavra aos  meus amigos acerca dos meus projetos   e   das   minhas   diligências,   fui    recebido  por  um  coro de  felicitações, ao ponto de pensar que podia haver exagero. O Sr. Ampère tinha sabido da notícia através do Sr. Montalembert em casa de Senhora Récamier. Desta  forma  a  notícia  corria  já  nas  esferas  mais  altas do mundo literário. O seu  pai  é aí muito conhecido  e  isso justifica que os cumprimentos sejam sinceros e unânimes. Não tenho aliás qualquer participação nos méritos que se projetam na minha insignificante pessoa e sobre o facto de no início da minha atividade professoral se projetar um reflexo poético.

Sou considerado hábil  e  consciencioso  ao mesmo  tempo,  por  não ter
querido abordar o estudo da Literatura cavalheiresca, sem  me informar
sobre o tipo de sentimentos que nela encontra tanto lugar. Estes gracejos com que se diverte a sociedade parisiense, mais viva e mais ligeira que a má-língua lionesa, não retiram nenhum valor aos votos que me dirigem em relação à minha felicidade futura. Eu acredito nas previsões positivas que a amizade justifica. É que a amizade é uma coisa divina. Sendo filha do Céu comunga com ele dos seus segredos. Aqui ela terra ela possui a chave dos corações e é por isso que da leitura que deles faz, resulta que a verdade futura lhe seja mais transparente. Além disso vendo tantos homens excelentes testemunhar-me uma amizade tão calorosa depois de todos estes meses e anos de ausência, sinto-me um pouco mais confiante ou talvez um pouco presunçoso, e chego à conclusão que sem nunca ter tido o dom de agradar, tenho a felicidade de conseguir prender ficando preso
também. Mas todas estas consolações não conseguem adoçar o azedume da distância. Nem eu quereria fazer-lhe crer, a si minha querida, que tudo isto me fizesse esquecer o que mais me falta. É certo que não imito de modo algum a penitência de Dom Quixote quando ele se retirou para o deserto para desempenhar o papel do Belo Tenebroso. Mas para dizer a verdade esta privação é-me bem dura. Longa será a espera. Estes laços com que me prendeu são como a corda atada à pata de um passarinho que tanto mais aperta e magoa quanto mais ele se debate. Estes sentimentos cuja intensidade inicial me espantou, há apenas três semanas, tornaram-se agora ainda mais fortes e imperiosos. E eu que pensava que não poderiam ser mais fortes do que então já eram. Constato que por este ponto de vista ou por qualquer outro, que os anseios da alma não têm limites.

No início de tudo, uma simples indisposição de alguns dias, tinha-me revelado, dadas as minhas inquietações, quão fácil tinha sido deixar-me
tomar por este sentimento. Só agora é que posso avaliar quão duradouro ele vai ser. E neste caso o exílio não é melhor do que a doença. Porque será que quaisquer que sejam as minhas tribulações a sua imagem me prevalece sobre todas elas?

Ao menos a sua pessoa fará com que elas sejam menores, afastando dois receios. O primeiro é o de eu não ter merecido o lugar que ambicionava nas suas recordações. Compreenderei que queira aceitar plenamente os desígnios da Providência, que guarde um grande respeito pela vontade de seus pais, e tenha uma indulgência extrema que talvez faça com que não fique rapidamente indiferente a este estranho, o qual esteve tão breve tempo junto de si e tão mal o aproveitou. Por certo que rodeada do carinho e do culto da família admirável que é a sua, não sinta qualquer falta dele. Contudo ele espera de si a generosidade de ser tocada pelo pensamento de o fazer feliz e dando-lhe uma palavra, lhe dareis com ela  muito mais. Espera ele ainda, que não o esquecendo, ouçais falar dele sem desagrado e que até vos interesseis pelo seu isolamento e pelas suas provações. Podereis estar certa quando ele estiver de regresso à vossa presença, voltará talvez melhor e sem dúvida mais ardente, por isso atrevo-me a pensar que não tereis de vos arrepender. 

Outra apreensão que toma o meu espírito é a propósito da sua saúde a qual a partir de agora não é apenas preocupação sua. É que com os rigores da estação, aliados à despreocupação que tem consigo própria, temo que não dê a atenção devida aos cuidados da senhora sua mãe. Peço-lhe que pense que no outro extremo da França alguém se aflige e se preocupa com a mais pequena indisposição que possa acontecer-lhe, ou que possa estar com a face mais pálida, ou até que esteja a dormir pior. Evitai-me senhora estas penas e  dizei-me, por caridade, que tudo está bem convosco. Pela minha parte faço votos ardentes para que assim seja, que espero sejam eficazes já que são de todos os momentos. Os meus lábios balbuciam em permanência, no meio das minhas ocupações, uma única oração: Que Deus me conserve aquela que Ele mesmo me destinou, aquela cujo sorriso é o primeiro raio de alegria que desde há muito iluminou o meu caminho na terra.

Peço-lhe aceite a certeza do  meu  profundo  respeito  sendo  que  desta
forma serei o vosso obediente servidor.

                                                                                        A. F. Ozanam

Sei que gosta de cartas claras. Lembro-me talvez demasiado disso. Desculpe-me de não ter  podido ser breve e de ter feito como em Lyon, onde não conseguia nunca deixar-vos. Para a próxima serei  mais discreto e talvez consiga ser menos grave.




terça-feira, 10 de setembro de 2019

4. A MISSÃO EDUCATIVA DOS PAIS






A Missão Educativa dos Pais


A Bíblia considera a família também como o local da catequese dos filhos. Vê-se isto claramente na descrição da celebração pascal (cf. Ex 12, 26-27; Dt 6, 20-25) - mais tarde explicitado na haggadah judaica -, concretamente no diálogo que acompanha o rito da ceia pascal. Eis como um Salmo exalta o anúncio familiar da fé: 

«o que ouvimos e aprendemos e os nossos antepassados nos transmitiram, não o ocultaremos aos seus descendentes; tudo contaremos às gerações vindouras: as glórias do Senhor e o seu poder, e as maravilhas que Ele fez. Ele estabeleceu um preceito em Jacob, instituiu uma lei em Israel. E ordenou aos nossos pais que a ensinassem aos seus filhos, para que as gerações futuras a conhecessem e os filhos que haviam de nascer a contassem aos seus próprios filhos» (Sl 78/77, 3-6). 

Por isso, a família é o lugar onde os pais se tornam os primeiros mestres da fé para seus filhos. É uma tarefa «artesanal», pessoa a pessoa: «Se amanhã o teu filho te perguntar ( ... ), dir-lhe-ás ... » (Ex 13,14). Assim, entoarão o seu canto ao Senhor as diferentes gerações, «os jovens e as donzelas, os velhos e as crianças» (Sl 148, 12).
Os pais têm o dever de cumprir, com seriedade, a sua missão educativa, como ensinam frequentemente os sábios da Bíblia (cf.Pr 3, 11-12; 6, 20-22; 13, 1; 29, 17). Os filhos são chamados a receber e praticar o mandamento «honra o teu pai e a tua mãe» (Ex 20, 12), querendo o verbo «honrar» indicar o cumprimento das obrigações familiares e sociais em toda a sua plenitude, sem os transcurar com desculpas religiosas (cf. Mc 7, 11- 13). Com efeito, «o que honra o pai alcança o perdão dos pecados, e quem honra a sua mãe é semelhante ao que acumula tesouros» (Sir 3, 3-4).

O Evangelho lembra-nos também que os filhos não são uma propriedade da família, mas espera-os o seu caminho pessoal de vida. Se é verdade que Jesus Se apresenta como modelo de obediência a seus pais terrenos, submetendo-Se a eles (cf. Lc 2, 51), também é certo que Ele faz ver que a escolha de vida do filho e a sua própria vocação cristã podem exigir uma separação para realizar a entrega de si mesmo ao Reino de Deus (cf. Mt 10, 34-37; Lc 9, 59-62). Mais ainda! Ele próprio, aos doze anos, responde a Maria e a José que tem uma missão mais alta a realizar para além da sua família histórica (cf. Lc 2, 48- 50). Por isso, exalta a necessidade de outros laços mais profundos, mesmo dentro das relações familiares: «Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática» (Lc 8, 21). Por outro lado, Jesus presta tal atenção às crianças - consideradas, na sociedade do Médio Oriente antigo, como sujeitos sem particulares direitos e inclusiva mente como parte da propriedade familiar aos adultos como mestres, devido à sua confiança simples e espontânea nos outros. «Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu» (Mt 18, 3-4).

                                                                               Papa Francisco,
                                                                          Amoris Laetitia, 16-18

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

9. ALGUNS TRAÇOS DO CARÁTER DE OZANAM


Alguns Traços do Caráter de Ozanam

Numa referência, embora rápida, a alguns traços do caráter de Frederico Ozanam, confessamos que não se sabe o que mais admirar nesse vulto extraordinário da primeira metade do século 19:  se a refulncia de um formoso espírito ou se a bondade de um grande coração.

Como homem de fé ardente, robustecida ao clarão de uma inteligência de escol, foi o apóstolo da verdade;  mas  como homem  conhecedor dos
reclamos da sociedade e das misérias humanas, foi o apóstolo da caridade. Verdade e caridade, duas palavras sublimes que devem nortear sempre a inteligência e o coração de todo confrade vicentino.

Contemporâneo e grande amigo de um sábio, cujo gênio cintilou nas ciências físicas e mateticas, o ilustre André Maria Ampère, a quem o nosso homenageado de hoje chamava o seu segundo pai, teve a sua personalidade descrita pelo mesmo Amre nos seguintes termos: "O que Ozanam colocou acima de todas as coisas neste mundo, o que lhe fez empreender os mais profundos estudos, escrever com admirável erudição e falar com arrebatadora eloquência; o que em suma assinalou de maneira indelével todos os seus atos, foi a sua grande fé nas verdades da religião católica, a soberana dominadora de toda a sua vida".

A ortodoxia, a crença inabalável nas verdades da religião de Cristo Redentor, era para Ozanam uma coisa sagrada, como se verifica a todo momento em sua correspondência e em seus discursos proferidos na célebre Faculdade de Sorbonne ou nas orações dirigidas aos iros das Confencias Vicentinas. "Eu me apego, disse ele, à ortodoxia cristã mais que a própria vida, amando e servindo de todo o meu coração a Igreja Católica, Apostólica, Romana".

Fato extraordinário,  que  bem  demonstra  a  nobreza  daquele  grande
es
pírito, é que a esta estrita intransigência doutrinária tivesse Ozanam aliado uma larga tolerância apostólica, o que também forma um dos traços acentuados de seu caráter. É que Ozanam, tendo arraigada no coração a caridade, sabia ser caritativo e complacente com aqueles que dele divergiam. Em seu apostolado da verdade, ele atacava o erro e não a pessoa. Os sarcasmos de Luis Veuillot, escreveu o Dr. Paulo Sawaia, esfumaram-se na senda do tempo, mas a caridade de Ozanam perdura até hoje e vencerá os séculos. Magnífico exemplo dava o jovem professor que sabia dominar-se para, pela tolerância, forma discreta da caridade, conquistar os adversários.

A pena adamantina de Lacordaire não  foi  a  única  a descrever essa modalidade do coração de Ozanam, mas é ainda o já mencionado sábio Ampère que assim se refere: “A tolerância em Ozanam nada tinha de comum com a fraqueza, mas brotava de uma liberalidade de vistas que fazia despertar simpatias". Convenhamos com Ampère, reconhecendo que a tolerância de Ozanam não procedia somente de sua bondade natural, mas era principalmente consequência da graça do Evangelho que lhe iluminava o espírito. Era, realmente, a suave irradiação do esplendor de sua fé e o reflexo da complacência cristã de um coração extremamente afetuoso.

Na preocupação de fazer o maior bem ao próximo, não recusava ele o auxilio de pessoas de outros credos, que, reconhecendo-lhe a generosidade, iam à sua procura para confiar-lhe a aplicação de uma esmola. Assim, nunca deixou de combater a religião de Lutero, mas se um protestante lhe entregava um donativo em benefício dos pobres, não deixava de dar perfeito desempenho a essa prova de confiança.

A esse respeito, conta o abade Perreyve que certa vez um jovem pastor protestante, havendo coletado uma quantia em dinheiro entre os seus companheiros, teve a lembrança de confiá-la a Ozanam para fazer a sua distribuição entre os pobres. Ozanam aceitou sem relutância o encargo, levando a importância à Conferência Vicentina, relatando a sua procedência. Então, um dos confrades fez em poucas palavras o elogio da tolerância no exercício da caridade, sendo o donativo distribuído não somente entre os pobres católicos mas também aos necessitados de outros credos religiosos.

Outro caráter que tanto eleva aquele coração - verdadeiro escrínio das mais nobres virtudes -, era a indulgência, o pendor natural em relevar ou atenuar as faltas dos outros, em contraste com a severidade que ele tinha para consigo mesmo. Em suas relações comuns com os confrades e colegas, com seus conhecidos e com os pobres de qualquer condição, demonstrava invariavelmente Ozanam aquela cordialidade tão bem definida e recomendada por São Francisco de Sales, nestas palavras muito expressivas: “A cordialidade é um contentamento que nos domina o coração quando encontremos uma pessoa de nossa estima; é um arrebatamento que experimentamos, como reflexo da felicidade que sentimos quando na presença de um nosso irmão a quem procuramos suavizar o sofrimento, dirigindo-lhe palavras confortadoras de fé e de esperança".

Foi Ozanam modelar discípulo de São Vicente de Paulo que nunca sentia maior contentamento do que quando tinha a oportunidade de servir aos pobres. Contava ainda este santo, que é o Padroeiro de todas as Associações de Caridade que, certo dia, perguntando a uma irmã de caridade, quase em estado de agonia, se alguma coisa lhe pesava na consciência nessa hora suprema entre a vida e a morre, teve a seguinte resposta: “Acuso-me de ter sentido demasiado prazer em servir aos pobres".

Eis, meus caros confrades,  em  rápido esboço,  alguns traços do caráter
de Frederico Ozanam, principal fundador da Sociedade de São Vicente de Paulo, e que há precisamente um século, no dia festivo da Natividade de Nossa Senhora, do ano de 1853, contando apenas 40 anos, 4 meses e 15 dias de idade, deixou esta vida terrena em que foi destemido defensor da Verdade e grande apóstolo da Caridade, e que logo, se Deus quiser, será glorificado pela Igreja.


                                 Cfd.   Carlos Francisco de Paula





Carlos Francisco de Paula - Nasceu em Campinas em 20. 10.1884 e na mesma cidade faleceu em 15.01.1963. Engenheiro civil em 1905 pela Escola Politécnica de São Paulo, foi catedrático de matemática em diversos colégios de Campinas, no Ginásio Estadual Culto à Ciência e na Faculdade de Filosofia da Universidade Católica. Vereador por muitos anos à Câmara Municipal de Campinas, foi vice-prefeito da cidade e diretor de associações beneficentes, principalmente a SSVP. Deixou publicados vários trabalhos sobre história de instituições citadinas. Era filho do Dr. José Tomás de Paula e de Clementina de Paula.

(Extraído do volume 10 da Antologia da Academia Campinense de Letras). 

(*) Oração proferida numa Conferência Vicentina Campinense.

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"O verdadeiro sábio é aquele que fica impassível a tudo o que os homens dizem dele, nem dá ouvidos aos pérfidos discursos dos lisonjeiros. Deste modo se prossegue com segurança o caminho começado."

                                            (in Imitação de Cristo, livro 3º, capítulo 17).