1º DOMNGO DO ADVENTO

Marcos 13,33 – 37

Ficai de sobreaviso, vigiai; porque não sabeis quando será o tempo. Será como um homem que, partindo de uma viagem, deixa a sua casa e delega sua autoridade aos seus servos, indicando o trabalho de cada um, e manda ao porteiro que vigie. Vigiai, pois, visto que não sabeis quando o senhor da casa voltará, se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã, para que vindo de repente, não vos encontre dormindo. O que vos digo, digo a todos: vigiai!

Comentário

Já é hora de acordar! Eis o apelo de Jesus no Evangelho que inaugura este tempo do Advento. Uma nova aurora surge no horizonte da humanidade, trazendo a esperança de um novo tempo de um mundo renovado pela força do Evangelho. Neste tempo de graça, somos convocados a sair do torpor de uma prática religiosa inócua, a acordar do sono dos nossos projetos pessoais vazios e egoístas. Despertos e vigilantes, somos convidados a abraçar o projeto de Deus que vem ao nosso encontro, na espera fecunda do Tempo do Advento, temos a chance de reanimarmos em nós e os compromissos assumidos em favor da construção do Reino, reavivando as forças adormecidas, para a construção de uma humanidade nova, livre das trevas do sofrimento, da marginalização e da morte.

Frei Sandro Roberto da Costa, OFM - Petrópolis/RJ

2º DOMINGO DO ADVENTO

Marcos 1,1 – 8

Conforme está escrito no Profeta Isaias: Eis que envio meu anjo diante de ti: Ele preparará teu caminho. Uma voz clama no deserto: Traçai o caminho do Senhor, aplainai suas veredas (Mt 3,1); Is 40,3). João Batista apareceu no deserto e pregava um batismo de conversão para a remissão dos pecados. E saiam para ir ter com ele toda a Judéia, toda Jerusalém, confessando os seus pecados. João andava vestido de pelo de carneiro e trazia um cinto de couro em volta dos rins, e alimentava-se de gafanhotos e mel Sivestre. Ele pôs-se a proclamar: “depois de mim vem outro mais poderoso do que eu, ante o qual não sou digno de me prostrar para desatar-lhe a correia do calçado. Eu vos batizei com água; ele, porém, vos batizará no Espírito Santo”.

Comentário

“Preparai o caminho do Senhor, aplainai as suas veredas”. Clamando pelo deserto, João Batista nos indica que procurar viver conforme a Boa-Nova que Jesus nos trouxe não se trata, simplesmente, de viver dentro de um sistema religioso com certas práticas que nos identificam com tais. Talvez ele queira nos indicar que a fé, antes de tudo é um percurso, uma caminhada, onde podemos encontrar momentos fáceis e difíceis, dúvidas e interrogações, avanços e retrocessos, entusiasmo e disposição, mas também cansaço e fadiga. No entanto, o mais importante é que nunca deixemos de caminhar, pois o caminho se faz caminhando. Boa caminhada de Advento e preparação!

Frei Diego Atalino de Melo

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

5. OZANAM E SUA ORATÓRIA GLORIFICADORA







OZANAM E SUA ORATÓRIA GLORIFICADORA



O precoce cientista, pensador, historiógrafo, polígrafo, poeta e jurista da Sorbonne, Antônio Frederico Ozanam - ávido de saber, sedento de cultura - para a maior glória de Deus -conhecia também, necessariamente, a fisiologia da arte oratória, disciplina que, como se sabe, supõe preexistentes vários elementos a serem postos em ação.

Mais do que ninguém reconhecia que seus órgãos físicos, muito fracos, não respondiam, a não ser imperfeitamente, aos impulsos da imaginação.

E, não só por esta razão, como também por uma natural timidez tolhia em seus lábios e em todo o seu ser, a expressão das suas faculdades.

Pensava Ozanam, naturalmente, no jogo de músculos em função, na boca, para a firmeza da palavra. Sabia da pluralidade e combinação precisa de movimentos da laringe, para a clareza da dicção. Refletia na subordinação dos músculos reguladores da pressão pulmonar, que têm de conciliar os interesses da prolação com as necessidades da respiração. Cuidava, o jovem professor, no maravilhoso e perfeito serviço de comandos nervosos caracterizados pela presteza das distribuições que têm de estar sempre à disposição do orador e sob a vigilância do ouvido. Imaginava o trabalho conjugado que tem o cérebro de traduzir o pensamento de noções adquiridas. Sabia que os processos de composição da linguagem convencionais, não coincidem com os processos naturais da associação de ideias, que na linguagem refletem. O exercício de pôr em linguagem perfeita aquilo que se pensa, é uma habilidade nas quais poucos chegam a ser exímios.

De todo esse sistema teórico possuía Ozanam conhecimento pleno. Mas, no pressuposto de que lhe faltassem requisitos , preparava as suas aulas como Catedrático da Sorbonne com um cuidado esmeradíssimo, um zelo religioso; acumulando material sem conta em torno de ideias, fecundava esse labor com o olhar nítido, demorado, direto da inteligência que ordena, armazena e coordena dando-lhe finalmente vida, nesse colóquio misterioso do orador que, hoje, diz a si mesmo, e, amanhã, dirá ao auditório. Assim, nas vésperas das suas lições, pelo meio dia começava a preparar-se para esse ato de eloquência o estudioso que havia nele, já teria recolhido os materiais, o arsenal necessário; o orador punha-se em ordem, muito cauteloso, nessas 24 horas. Preparado, mas de físico abatido e macilento, sua apostólica figura escalava a Cátedra, assomava à tribuna.

Desde logo, ao enunciar a tese não se sentia muito firme, penosa era a dicção, embaraçoso era o gesto, mal seguro o olhar receoso de encontrar o dos espectadores. Não obstante, tecia o seu discurso inicial fracionado,  circunstância que, possivelmente no começo, exigia maior atenção intelectiva dos ouvintes.

Perfilado e imbuído de que a Cátedra da Sorbonne lhe imprimia as responsabilidades de um púlpito, com pausas e breves hiatos, dava começo ao discurso. Gradativamente, porém, sobrevoava-lhe a luz da Graça, a inspiração divina, o reflexo do Céu!

Pela atração que as palavras comunicam umas às outras; por essa vitória de uma convicção firme sobre o espírito ei-lo em pleno autodomínio, reconduzido ao natural e sob as infusões do Divino Paráclito. Dispondo já do auditório - a sair daquela temperatura morna, de silêncio tão acabrunhado - ó metamorfose inesperada, ó surpresa impressionante -   transmuda-se o moço Professor, aos olhos de todos: rompia os diques do abismo e, numa voz de timbre claro e agradável, a eloquência caia aos borbotões sobre a terra trabalhada e fecunda!

O orador era sinceramente aplaudido e, palpitando de uma felicidade conquistada em oito horas de trabalho e uma hora de vivacidade, regressava ao lar, para novo esforço – condição de todo o trabalho e pedestal de todo o triunfo!

É o depoimento do notável acadêmico Guayan na obra "Frederico Ozanam", no capítulo: "Professor da Sorbonne" que nos informa: "Ozanam em alguns meses tornou-se célebre como Professor da Sorbonne".

"NESSE TEMPO, diz Guayan, SER PROFESSOR DA SORBONNE, ERA EM PRIMEIRO LUGAR, SER UM ORADOR”!

Para tal juízo, para semelhante conceito, o nome de Frederico Ozanam na mesma órbita da tradição de Guizot Wileman, De Cusan, fulgia em todo o esplendor!

Lacordaire - o portentoso Príncipe do discurso moral no cenáculo de Notre Dame, refere:

“Não é comum que um homem erudito seja também um homem eloquente".

E, consolidando essa afirmativa, com a sua autoridade decisiva de Sacerdote e luminar, Lacordaire proclama: "Ozanam por um dom singular, possui a, a um tempo: ELOQUÊNCIA E ERUDIÇÃO”.

Uma e outra lhe eram naturais. Podia vê-las uma noite inteira nas obscuras regiões de uma língua morta, ou, duma obra desconhecida e, no dia seguinte escrever versos, preparar um discurso, extasiar-se na contemplação direta da verdade e do belo!

Tal como era, sedimentado por aquela virtude que faz o pequeno grande, e o grande, grandíssimo - a santa humildade - Ozanam produzia uma impressão profunda: e, essa impressão resultava, sobretudo, dos clarões de aurora que sua palavra projetava nas almas; do mel dulcífico que sua eloquência distilava nos corações.

Fora um dia feliz para ele o dia em que um estudante lhe confiou: "O que não puderam fazer muitos sermões, caro mestre, conseguiu-o, o Senhor, num só dia: FEZ-ME CATÓLICO”.

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É que, em todos os aspectos ilimitados de sua personalidade inconfundível, Ozanam servia-se da parte sobrenatural. Era dos mestres que se devotam a amar o aluno com um sentimento que procede da convicção de ver neles um filho de Deus; de acolher seu discípulo como outro Cristo; exercendo-lhe a paternidade espiritual, certo, mais importante que a paternidade natural. Seus alunos recebiam, com a cultura científica, a formação espiritual para, precipuamente, serem: Cristãos Santos, e, Santos -- filhos de Deus e cidadãos do Céu! . . . Por isso era corrente, nos locutórios da Sorbonne ouvir-se: "OZANAM TEM FOGO SAGRADO!" "Há tal convicção interior, neste homem, que mesmo com todos os seus defeitos ele nos convence e nos comove”. “Ao ouvi-lo o sentimos que as lágrimas nos acodem furtivamente aos olhos".

Com efeito, Caros Confrades, assim era Ozanam – protótipo  da firmeza de caráter a que os romanos titulavam:


"VIR BONUS, DICENDI PERITUS"

Dele podemos dizer: "Vivia o que pregava. A autoridade das palavras sobrepunha o peso dos exemplos certo de que, si as palavras movem, como afirmava São Paulo, os exemplos arrastam.

Aos estudantes apresentava-os tal qual era: como católico.

Um gracejador impertinente afixou um dia na porta da sala de aula estas palavras: "Curso de Teologia". Ozanam, não se agastou, antes, gostou. “Não tenho a honra de ser Teólogo retificou Ozanam, mas tenho a felicidade de ser cristão”!

Este cristão, diz o autor onde lemos o episódio, no momento em que Michellet e Quinet, no Colégio de França, trovejavam contra os Jesuítas, Ozanam, na Sorbonne, defendera três teses:

A 1ª. sobre o PAPADO, a 2ª sobre os MONGES e a 3ª sobre a OBEDIÊNCIA MONÁSTICA. E, quando, na universidade, a aula do seu colega Carlos de Normando, católico como ele, era perturbada por manifestações, Ozanam estava  lá para dar um cheque nos manifestantes.

O amplo domínio, na Sorbonne, abrangido pelo olhar de Ozanam está repartido por 4 ou 5 cadeiras, nas nossas grandes  Universidades de hoje.

A árvore genealógica dos seus grandes temas ele desenhava numa pálida imagem dessa outra árvore que fascinava a sua mocidade: a Árvore das Tradições Religiosas Universais, una na sua raiz, aspirando a levar para Deus uno aos múltiplos ramos  da sua copa.

A sua ciência, enfim, fosse qual fosse o seu aparato oratório, era incontestavelmente a de um sábio!

Para tanto, o Curso de que se encarregara no antigo santuário das letras parisienses exigia a incomparável destreza de sua inteligência de escol. Conhecia, a fundo, as principais línguas modernas. Toca-las era encontrar o que lhes constitui a alma e a novidade, isto é, o Cristianismo; e encontrar o Cristianismo era para ele: defende-lo, exaltá-lo, irradiá-lo, sublima-lo!

Nenhum homem de Fé, ao menos de Fé viva, Fé em movimento, Fé irriquieta, havia ainda surgido nas cátedras em que ressoavam diariamente os aplausos tributados a outras doutrinas e a outros oradores.



         Sorbonne

Quarenta anos de ausência desses pináculos da literatura tinham condenado ao desprezo o gênio esgotado dos cristãos da França, informa Guayan. Pois bem.

Ozanam aí sobe, sobe ao abrolhar dos 27 anos e, como rio um João Crisóstomo, dessa "boca de ouro", de onde, desde muito havia "despertado a caridade adormecida no seio da Juventude e criado essa mansão que provém do céu: a Sociedade de São Vicente de Paulo - cai uma palavra em que Arte e Erudição confraternizam-se.  

O orador é jovem, sincero, ardente e culto! Possui ainda um encanto particular que, aliado aos outros dons, completaria em sua pessoa o paladino de uma sedução predestinada: é a sua maneira de ser para com todos, de uma simplicidade espartana ou nos moldes da alma exposta e coração aberto dos franciscanos.

A oratória, como se sabe, antes de tudo, carece ter verdade. E, como diz Santo Agostinho, a missão dela consiste em fazer com que a verdade apareça, transluza; agrade e mova por meio da persuasão; porque, como no-lo  diz Tuchet, o incomparável modelo de orador, Bispo de Orleans: "a palavra, que unge os lábios e sagra o coração entre os dons que Deus deu aos homem, é um dos mais magníficos".

Ozanam, por si, tinha a verdade e possuía qualidades, dotes, dons de apresentá-la de um modo claro. ele nutria amor, paixão, entusiasmo pela Verdade - o grande e poderoso recurso de fazer com que ela, aparecendo, agradasse ; e, assim, ganhava as inteligências pela evidência da exposição, e conquistava os corações por despertar neles, por meio de persuasão o amor da verdade!

Leiam-se as páginas brilhantes, que escreveu; recordem-se os discursos de circunstância, que proferiu; os atos marcantes, que executou; a correspondência memorável, que legou; as obras imperecíveis, que fundou; e, em todo esse repositório inefável de sua vida não se descobrirá nem a cólera que se vinga, nem o amargar que cresce à medida que se espalha, nem o desprezo que afronta, nem a ironia que zomba a pretexto de instruir ou corrigir.

Sem deslustrar a Igreja perante o mundo, ele impunha com mão generosa, porque norteado pela caridade - o cetro da Verdade, do Bem, do Belo e do Amor!

Prefere lamentar, a acusar; reclina-se a perdoar, a condenar; sempre protegido pelo escudo invencível, modera a força de sua espada, receoso de reduzir à morte uma alma que ainda possa sobreviver!  

Durante 2 anos que ocupou sua Cátedra, Ozanam expôs, sucessivamente os primeiros desenvolvimentos do gênio Cristão na Alemanha, Inglaterra e Itália.

Desse vasto estudo não nos restam mais do que 21 lições sobre a Civilização no Século 5º, mas esse monumento inacabado basta para dar uma ideia do que eram a Eloquência e o Saber de seu autor e de como, ele, se utilizava da Eloquência  e do Saber para engrandecer, de maneira incansável, o Cristianismo no espírito de quem não lhe recusasse sua influência.

Essas lições permanecerão entre os trabalhos mais notáveis da Apologética Cristã do Século 19 como, na expressão do velho texto latino:

"UNA VOX GLORIOSA"

Ilustres Confrades:
Entre as paginas que Cícero escrevera a Tusculo é memorável a em que celebrou a Glória como luminoso degrau em que os homens escalam a imortalidade! Mas, esta glória era vã e enganadora.

Muito outra, prezados Confrades, era a glória de Ozanam. Ele não queria a glória do tempo. Ele visava a glória do Eterno! Essa é a dos filhos de Deus e da Igreja, em cujo seio viveu e morreu Ozanam e sem renunciar da Glória Eterna!

Mas ficando no domínio dos séculos que passam, ainda assim a Glória da Sorbonne é mortiça e apagada diante da Glória que Ozanam alcançou com as "Conferências de São Vicente de Paulo"!

A morte estancou a eloquência da Sorbonne, mas tornou-se impotente contra a eloquência da caridade - de que Ozanam foi Mestre emérito, insigne, incomparável!
                                                                  VASCO DA GAMA PAIVA
15-5-1958




segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

3. CREIO NO PROGRESSO DOS TEMPOS CRISTÃOS



Creio no progresso dos tempos cristãos. Não me abalo com as quedas e extravios que os interrompem; as noites frias que sucedem ao calor dos dias não impedem ao verão seguir seu curso, nem impedem tampouco que os frutos amadureçam. A história nos oferece o espetáculo muito comum de séculos de gerações de destruidores seguidos de séculos de construtores, e ocorre muitas vezes o fato de gerações que acreditaram deixar somente ruínas. Ignoraram que estavam preparando os fundamentos de uma nova construção. 
                             (in A Civilização Cristã no Século V, p. 51).

sábado, 22 de dezembro de 2018

12. PREÂMBULO DA "NOVA REGRA DE 1969": A SSVP NO MUNDO MODERNO




Fora da Caridade não há salvação!
INTRODUÇÃO


A Nova Regra aprovada em 1969  pelo Conselho Geral  de Paris, França, veio precedida por um Preâmbulo,  redigido  pelo  Cfd.  Pierre  Chouard, Presidente   Geral   de  1954  a   1969,   apresentando  em  suas   linhas  fundamentais o que é e o que  deseja  ser  a  "Sociedade de São Vicente de Paulo no mundo moderno". O  Preâmbulo  deve  ser lido e  meditado, para   que   se   tenha    uma    compreensão  perfeita  do  espírito  e da  finalidade  da Sociedade de São Vicente de Paulo. 

O Preâmbulo exprime, em linguagem clara e atual, a nossa vocação, nossa espiritualidade e a ação de nosso apostolado caritativo, além de ser exuberante fonte de ensinamentos para o presente e o futuro, dentro do conceito de dupla finalidade à tradição e à adaptação exigida para atender as condições do mundo atual.


PREÂMBULO

A SOCIEDADE DE SÃO VICENTE DE PAULO
NO MUNDO MODERNO


I - RECORDAÇÃO DAS FONTES


Retorno às origens da Sociedade de São Vicente de Paulo:
Intenções primeiras, intenções de sempre


        Em 1833,  Frederico  Ozanam,  então  estudante  com  20  anos  de 
idade, em Paris, e alguns jovens amigos sentiram com Bailly, o mais idoso, a inspiração de unirem-se para o serviço aos "pobres", da maneira mais humilde e discreta, no âmbito de sua vida familiar e profissional de leigos.

      Sentiam, primeiramente, a necessidade de dar testemunho de sua fé cristã, mais por atos que com palavras. Consideravam como seus irmãos os infelizes, quaisquer que fossem eles e a espécie de seu sofrimento. Neles viam o Cristo sofredor. Amavam-nos como homens e como filhos de Deus. Neles reconheciam a dignidade de homens confrontados com o mundo e suas misérias, e também a dignidade daqueles aos quais, em primeiro lugar, é dado o Reino de Deus.

      Desde que entraram em contato pessoal com os pobres, perceberam que a caridade é inseparável das exigências da justiça. Na medida a seu alcance,   reivindicaram-na   para   os  pobres.  Mas,  se  nem  sempre  é
possível obter justiça aqui na terra, quiseram fazer, ao menos, o que deles próprios dependia, simples estudantes: dar, pessoalmente, aquilo que o mais pobre pode dar, a partilha do seu tempo, de seus modestos recursos, de sua presença, de seu diálogo, e tudo o que pode ser feito para tentar ajudar eficazmente. Partindo daí, pareceu-lhes que, para compreender os pobres, é preciso primeiramente ser pobre com eles.

       Assim vivida, aquela que ia tornar-se a Sociedade de São Vicente de Paulo,  não  podia,  senão,  chamá-los  ao  aprofundamento  de  sua vida espiritual.

       Viver em  tal contato pessoal  com os que  sofrem,  viver  unidos em
comum e com tal espírito, é a própria essência, o caráter original da Sociedade de São Vicente de Paulo. Para a época e da parte de leigos, a iniciativa de Ozanam e seus amigos exprimia uma antecipação profética. Hauriam-na nas próprias fontes da Palavra de Deus e da Tradição cristã. 

Enraizamento da Sociedade de São Vicente de Paulo
na mensagem evangélica

       Basta reler o Evangelho,  para encontrar  a inspiração que animou a
Sociedade de São Vicente de  Paulo  desde sua  fundação. Em resumo: O
Reino de Deus já está aí: os pobres,  os pequenos   aí estão e aí têm sido
chamados os primeiros (1). - O Reino de Deus é o mandamento do amor, o coração da mensagem evangélica (2). - O testamento do Cristo é o amor fraterno vivido conjuntamente através do amor de Deus, e ele começa pelo serviço ao "próximo" (3). - A caridade é universal e recíproca: os pobres servem os pobres, e também fazem esmola e seu testemunho é o mais alto (4). - O serviço aos pobres é o serviço ao próprio Cristo (5), esses pobres com os quais seremos sempre confrontados (6) e a quem nós serviremos com amor e justiça (7). - Na vida de pobreza - quer dizer, de partilha - encontra-se a verdadeira fecundidade de nossa vida, de homens, assim como de cristãos (8).

       A história da  cristandade  ilustra a  preocupação com a dignidade e
com o serviço aos pobres: percebe-se, na obra universitária e literária de Ozanam, o lugar ocupado pelo testemunho de pobreza vivida com os pobres por São Francisco de Assis e o exemplo de incansável devotamento e de eficiência de São Vicente de Paulo, escolhido como patrono da Sociedade nascente. 
               
     Os textos apostólicos desenvolvem essa mensagem: nós e os pobres, em primeiro lugar, somos filhos adotivos e herdeiros de Deus (9); esse estado introduz-nos na esperança (10) pela lei universal do amor (11) e
esta atitude abre caminho ao diálogo e à reciprocidade da partilha entre
irmãos, em caridade e em justiça, inseparavelmente (12).

II - A VOCAÇÃO VICENTINA, CORAÇÃO DA UNIDADE DA SOCIEDADE DE SÃO VICENTE 
DE PAULO

        A palavra   "vocação",  empregada  diversas  vezes  por  Paulo  VI,  dirigindo-se à Sociedade de São Vicente de Paulo, exprime claramente a significação profunda da unidade, sentida de modo tão concreto por todos os seus membros.

Uma vocação, um apelo: o serviço direto aos pobres

        Uma vocação,  no sentido  lato,  é um  chamamento da consciência 
esclarecida pela graça do Espírito Santo. Ter querido um dia experimentar vir a ser "vicentino", é traduzir em atos uma conseqüência de nossa fé de cristão: isto não é somente o chamamento absolutamente universal do Cristo ao espírito da caridade, é uma nota particular desse apelo: o desejo íntimo de participar pessoal e diretamente do serviço aos pobres por um contato de pessoa a pessoa, pelo dom pessoal de seu coração e de sua amizade e de fazê-lo numa comunidade fraternal de leigos animados pela mesma vocação.

         Existe uma infinidade de gradações e de modos para exprimir essa
vocação: traduzi-la concretamente em atos, meditá-la, adaptá-la ao mundo diverso e em mudança, é a vida de cada vicentino, toda a vida da Sociedade de São Vicente de Paulo.

        No início, ela exprimiu-se  pela visita  aos pobres em seu domicílio,
considerada como o protótipo das atividades vicentinas. É preciso traduzir o seu sentido numa linguagem mais moderna: não se" trata de contentar-se com "esmolas", mas é necessário chegar ao diálogo pessoal com os desamparados, sem o menor traço de paternalismo, em atitude de confiança mútua, de respeito às pessoas, bem como ao lugar sagrado; que é o seu lar, de partilha da amizade e de reciprocidade dos serviços prestados e de todas as delicadezas do amor.

   Toda atividade caritativa, vivificada por tal atitude, pode ser considerada uma obra da Sociedade de São Vicente de Paulo.

        Esta  vocação  poderia   ser  vivida  isoladamente,  mas  ela  não  é 
plenamente sentida e sustentada,senão em certa comunidade: encontra-se aí a alegria de partilhar fraternalmente o mesmo ideal, mais completo respeito à dignidade dos pobres, que são auxiliados anonimamente pelo grupo, do qual tanto o mais pobre como o mais rico podem ser agentes.


Uma motivação, uma finalidade

        A fonte da vocação vicentina é, ao mesmo tempo, humana e divina:
é a angústia sentida ante o espetáculo da miséria de outro ser humano, a reação espontânea de simpatia: é até a indignação diante das injustiças sofridas por nosso próximo. É também a atitude do cristão impregnada pela palavra de Deus, vivendo da esperança do mistério pascal da Ressurreição, portadora dessa mensagem que contém toda a fraternidade humana pelos que suportam sua cruz, pela fé nesse mistério da presença do Cristo nos pobres.

        A finalidade  é  o  socorro  humano  aos infelizes,  no cuidado com a
realização de seu destino de homens; é, também, pelas únicas vias interiores da graça e do testemunho, a salvação comum na participação do Reino de Deus.


III - O ENGAJAMENTO VICENTINO. A REGRA VICENTINA

       Toda vocação  conduz a  um  "engajamento",  isto é,  a uma adesão
absolutamente livre a certo gênero de vida, definido por certa "regra", escrita ou não escrita. Para quem sentiu a vocação para o serviço pessoal aos pobres, com uma preocupação de vida em comum e também com a firme convicção de seu estado leigo engajado nos negócios deste mundo, ingressar na Sociedade de São Vicente de Paulo é o compromisso que dá corpo a essa vocação. Uma vocação não seguida pelo engajamento é vocação sem efeito, vocação perdida.

     O engajamento vicentino não é, de modo algum, voto constrangedor, pois nada é mais livre. Mas  é  ato  sério: aprende-se  a  reconhecer  e  a
experimentar que o encontro com os pobres e com os vicentinos, que se
dedicam a seu serviço, é enriquecedor.

      Em geral,  quem atende  à vocação  vicentina  e vive-a lealmente por
esse engajamento numa "Conferência de São Vicente de Paulo", mesmo
que venha um dia  a retirar-se,  permanece modificado   por aquilo que  viveu, disponível aos  mais desprovidos e preocupado em humanizar as relações ameaçadas de anonimato no seio do mundo atual. 

        Todo compromisso  supõe  a  adoção  de uma regra. Aqui a "Regra"
é   o   antigo   "Regulamento",   mas   rejuvenescido,   simplificado.  É  a expressão densa e concisa do espírito que a anima. A "Regra" nada é sem esse espírito, e o próprio espírito tem necessidade da Regra para garantir a unidade.

IV - A SOCIEDADE DE SÃO VICENTE DE PAULO: SUAS CARACTERÍSTICAS ESSENCIAIS

Uma associação profundamente fraternal

        Desde seus primeiros encontros, os fundadores da Sociedade de São Vicente de Paulo sentiram tal conforto nessa experiência de vida comum, que se consideraram verdadeiramente "irmãos" e instituíram o costume de reencontrarem-se, com grande alegria, uma vez por semana. Em nossos dias, um mínimo de assiduidade e de regularidade das reuniões continua essencial.

        A afeição mútua, a igualdade fraternal no seio da Conferência, co-mo entre todas as Conferências do mundo, fazem da Sociedade de São Vicente de Paulo verdadeira "família" humana e espiritual, aberta a todos os que aspiram à sua vocação própria.

Uma família de leigos cristão 


        É uma associação  de leigos (sem que  isto exclua  os seminaristas,
religiosos, ou padres que queiram participar da vida vicentina). Vivem no mundo, assumem encargos e responsabilidades. Suas origens são de extrema diversidade: jovens ou idosos, sem a menor distinção de riqueza ou de limitações, não importa qual seja a condição social, étnica ou nacional. Basta que se entendam sobre a mesma finalidade e compartilhem suas experiências e sua preocupação comum de servir aos pobres.

    São  homens  ou  mulheres, solteiros,  casados,  viúvos,  ou mesmo casais iluminando seu lar pelo amor ao próximo.

        As características jurídicas deste estatuto de sociedade de leigos foram reconhecidas por diversos Papas, assim como pelos decretos e constituições conciliares do Vaticano II, acentuando que a Caridade é o pilar de todo o apostolado, colocando no mesmo ato o destaque sobre o lugar das obras caritativas na Igreja.

        A Sociedade  de  São Vicente  de  Paulo estabelece livremente suas
regras, elege seus responsáveis com toda independência, administra o seu patrimônio de maneira autônoma.

        Mas trata-se de leigos cristãos:  a estrutura  da  Sociedade está em
harmonia com sua unidade na fé cristã; batizados, filhos adotivos de Deus pela redenção realizada pelo Cristo, membros de seu Corpo Místico, que é a Igreja Universal, aí se encontra o sentido profundo de sua fraternidade, de seu amor aos pobres, de seu apego à hierarquia. Embora independentes dela, como membros de um grupo de leigos, testemunham-lhe uma fidelidade ainda mais espontânea do que se lhe fossem ligados juridicamente.

        Nesse clima de liberdade, é  de tradição prestar  conta da atividade
vicentina ao Papa, ao Bispo, ao Pároco e estar sempre prontos a associar a ação do Movimento à das organizações eclesiais que o desejem. Jamais a intimidade de tais relações foi desmentida e não se desmentirá, pois mais do que na "lei", é no "espírito" que ela está inscrita. A Igreja tão bem o sentiu na cúpula, que jamais cessou de renovar sua confiança na Sociedade de São Vicente de Paulo.

Uma Sociedade de espírito jovem

        Fundada por jovens e para os jovens, cuja fraternidade se prolonga
durante a vida inteira, o espírito de juventude é uma característica original e permanente da Sociedade de São Vicente de Paulo. Ela foi gravada desde o começo no Regulamento e aí permanecerá. Mas é também o ponto sobre o qual é mais necessário estar vigilante, pois a juventude do corpo se desvanece em cada um e é preciso renová-la constantemente no nível do coração e do pensamento.

        O espírito de juventude é o dinamismo, o entusiasmo, a projeção
no futuro. É a aceitação generosa dos riscos, é a imaginação criadora, quer dizer, acima de tudo, a "adaptabilidade", essa propriedade essencial da mocidade, bem mais importante que a adaptação que se torna esclerosada, quando não se sabe mais readaptar-se.

        Neste  sentido,   a Sociedade  de  São  Vicente  de  Paulo  pode  ser 
chamada "movimento de caridade e de apostolado". No entanto, a juventude de idade não basta sempre para garantir a juventude de espírito, mas predispõe a isso. Dar amplo lugar aos jovens, compreendê-los, dialogar com paciência recíproca, conferir-lhes encargos, ser jovens com eles, é tanto uma necessidade de recrutamento, como exigência de fidelidade à tradição vicentina de Ozanam.

Uma Sociedade universal

        Sabe-se como  a  primeira  "Conferência de Caridade" se dividiu em
duas "Conferências de São Vicente de Paulo", porque crescia desmesuradamente; depois proliferou no mundo inteiro, como um enxame e por geração espontânea. A tristeza da separação foi compensada por essa alegria e por este mistério: em qualquer lugar, onde o vicentino encontre uma Conferência, acha uma família, - a mesma família - não obstante a extrema diversidade das ocupações e das particularidades nacionais.

        Entre  as centenas  de milhares  de  "confrades"  e  "consócias"  de
mais de cem nações dos cinco continentes, realiza-se a mesma vocação, a mesma regra, o mesmo vínculo, simbolizado pelo Conselho Geral Internacional, do qual as Conferências do mundo inteiro recebem sua "Agregação".

        Desde 1947, a possibilidade de cumprir regularmente, em Paris ou
em outra cidade, Assembleias Plenárias reunindo os responsáveis nacionais, tem reforçado essa unidade: a colegialidade é a regra, ao passo que o Presidente exprime as decisões do Conselho, como representante do colegiado.


Unidade na diversidade, adaptação
às condições em mudança do mundo

A universalidade implica, ao mesmo tempo, a unidade e a diversidade: as formas da pobreza evoluem como o mundo. Em todo lugar, a todo momento. é necessário imaginar uma "sondagem" da miséria e do alívio que lhe pode ser dado. A unidade fundamental da vocação vicentina está aberta a todas as disparidades de ações readaptadas constantemente para o mesmo fim. A Sociedade permanece "una" no pluralismo de ações.


Uma família católica aberta ao ecumenismo
no seio da Igreja universal

  Esta unidade na universalidade estende-se naturalmente à abertura ecumênica da era pós-conciliar. É um sinal providencial que, desde a primeira metade do século XIX,  apenas a palavra "cristãos" tenha sido inscrita na Regra, para definir a comunidade essencial dos vicentinos. No entanto, a Sociedade de São Vicente de Paulo ia desenvolver-se durante mais de um século com fisionomia estritamente católica.

        Por sua extensão e seu caráter universais, por sua franqueza e seu
caráter leigo, por sua predisposição a cooperar com todas as espécies de ações caritativas dos cristãos e de todos os homens de boa vontade, pela própria natureza da "caridade, contra a qual não há lei", por um apostolado de testemunho e não de proselitismo a Sociedade de São Vicente de Paulo está preparada para as experiências ecumênicas. Ela as considera, ao mesmo tempo, com prudência e com esperança. Reza pela unidade dos cristãos; tem sede dessa unidade; sente-se chamada a contribuir para isso.


V - CARIDADE, POBREZA E APOSTOLADO


Aspiração a uma vida mais evangélica

    No seio desta Sociedade de São Vicente de Paulo, cujas características constitutivas foram aqui evocadas, seus membros aspiram, tanto quanto lhes permite sua fraqueza, a responder à sua vocação por uma vida caritativa e apostólica, isto quer dizer: testemunho de sua fé pelo amor pessoal aos que sofrem. À luz das fontes evangélicas, como dos ensinamentos do Vaticano II, e em presença deste mundo de hoje, do qual assumem o encargo como leigos engajados. os vicentinos redefinem sua missão e suas aspirações.


Pobreza da Sociedade de São Vicente de Paulo

        A Sociedade  é  tradicionalmente  pobre, isto é,  não entesoura;  dá,
dia-a-dia, o que recebe de seus membros e benfeitores, pouco ou muito,
segundo as circunstâncias. As despesas de funcionamento são reduzidas ao mínimo compatível com a eficácia; não se envolve com capitais mobiliários ou imobiliários de investimento, nem tem administração além da que é necessária para evitar a desordem.

Espírito de pobreza dos vicentinos

        A palavra "pobreza" tem significado complexo e ambíguo: pode-se
dizer que a pobreza é uma condição econômica, mas pode considerar-se
também que é uma disposição interior. As traduções da Bíblia empregam a palavra nos dois significados, que se interpenetram. Trata-se sobretudo aqui de analisar brevemente a virtude da pobreza que acompanha a da caridade.

       Não se pode entrar em diálogo com os pobres, senão sendo também pobre em alguma coisa. Sentir isto é uma das graças mais profundas que pode receber o "visitador dos pobres". A cada um, segundo sua vocação própria, compete ser testemunha da primeira das beatitudes, vivendo o espírito de pobreza, inseparável de algum despojamento voluntário ou acidentalmente sentido ou aceito de maneira concreta e vivida.

       O espírito de pobreza é, antes  de mais nada,  espírito de partilha: a
vontade de não reter as riquezas sem bom uso. Salvo caso excepcional, o "voto de pobreza" (no sentido dos religiosos) não é algo compatível com as responsabilidades de um leigo, mas é ainda maneira de pobreza, em sentir nossas riquezas, nossos talentos, como dirigidos incondicionalmente ao serviço do bem comum e, antes de tudo, ao serviço de nosso próximo mais deserdado.

     O espírito de partilha exprime-se, pelo menos, na vontade de partilhar totalmente alguma coisa: um dá o seu tempo e pratica a virtude da disponibilidade; outro dá seu dinheiro; este dá seu saber; aquele usa sua saúde; aquele outro oferece o conforto que irradia de sua pessoa ... Todo cristão, mesmo o mais indigente, pode, sem heroísmo excepcional, participar de tais partilhas, de tais trocas e, assim fazendo, aprende, pouco a pouco e livremente, a dar-se ele mesmo, no sentido que lhe é revelado pelas graças pessoais que recebe. A partilha é bem diversa de um donativo e completamente diferente da esmola; é feita de reciprocidade e de troca.


Modéstia e eficiência

        Essa caridade vai além da esmola:  implica constante disposição de
humildade e de modéstia. O contato direto com os infelizes afasta primeiramente toda publicidade e demonstra até que ponto somos meros instrumentos inúteis, valorizados apenas pela graça de Deus. E, portanto, é preciso ir às raízes da miséria. Muitas vezes isto não se pode fazer sem meios poderosos. As grandes obras de beneficência ou de assistência social não são próprias dos vicentinos, que nunca as procuram, pois sabem que são pessoalmente chamados ao discreto papel de "soldado raso" na luta contra a miséria. Mas, se as circunstâncias os conduzem a tais obras, não as rejeitam, mas esforçam-se por conservar aí algo do contato humano para o qual foram formados pelo exercício da caridade vicentina.

        Quanto  à publicidade,  ela situa-se  entre  o  dever  de  informação
("não conservar a luz sob o alqueire") e o dever de discrição.



Preocupação com a justiça social, disponibilidade em face do
"desenvolvimento solidário da humanidade"

          Se é necessário ser modesto, é também preciso ser lúcido. O excesso de modéstia arrisca encobrir a extensão das responsabilidades de uma sociedade tornada providencialmente universal, através de tantos países do mundo: a constituição conciliar "Gaudium et Spes", as encíclicas "Mater et Magistra" e "Populorurn Progressio" são elementos fundamentaisde lucidez para todas as vocações caritativas, mesmo e principalmente para as que desejem ser mais discretas.

          Também a Sociedade de São Vicente de Paulo, em seu conjunto, e seus membros individualmente, sentem-se mais claramente interessados pelas novas dimensões da solidariedade global dos homens. Os entraves à justiça social, as misérias da fome, os sofrimentos do subdesenvolvimento, interessam a todos os vicentinos, mesmo que pareçam estar afastados no espaço. Não lhes é possível esquivarem-se a eles: a imaginação criadora  deve conduzi-los a dedicar as virtudes do diálogo direto e pessoal a todos esses problemas mundiais, que não estão reservados unicamente à política internacional.


           As dimensões do  nosso próximo  de  hoje têm crescido; é preciso
responder a isso. O Terceiro Mundo, por seus estudantes, seus trabalha-
dores, seus emigrantes, está presente no seio das cidades tecnicamente avançadas. O engajamento nas ações de cooperação pode ser considerado como uma expressão de vocação vicentina. Nas jovens comunidades cristãs dos países do Terceiro Mundo, o ideal vicentino já leva os mais pobres a socorrer eficazmente outros pobres, e a viver as dimensões do amor cristão. Tudo está por construir nesta etapa do mundo moderno.


Presença da Sociedade de São Vicente de Paulo no mundo

          Reencontrar eficazmente os que sofrem misérias as mais diversas
não é apenas tema de meditação; é também exigência de aprendizado, de conhecimento técnico dos problemas sociais, da psicologia dos que sofrem alguma frustração, experiência do contato direto com os infelizes. A Sociedade de São Vicente de Paulo tem por missão fazer desenvolver essa técnica e, como todas as organizações da Igreja, ela se faz presente e disponível, em cada um de seus membros, onde puder servir.

          Toda unidade social pode ser campo de recrutamento e de atividade de uma Conferência de São Vicente de Paulo: escola, universidade, usina, hospital ou sanatório, mesmo prisão, etc., mas tradicionalmente a Conferência está presente, em primeiro lugar, na Paróquia, e também nas comunidades mais diversas. Os vicentinos sabem que não têm o monopólio da caridade, que são apenas modesta família cristã possuindo experiência caritativa humilde e fecunda, e que por isso estão prontos a partilhá-la com todos e para todos. Seu serviço deve exprimir-se pela orientação pastoral: cooperar e servir, mas não desaparecer!

          Sua colaboração pode  estender-se igualmente às grandes organizações, como às "Caritas" nacionais e internacionais que empregam meios poderosos, e àquelas às quais podem fornecer a sua experiência do contato individual.

            Esta presença e esta abertura devem manifestar-se enfim na sua
família, na sua profissão, na sua vida cívica. Ela impregna toda a vida pessoal dos vicentinos.

Procura de vida evangélica,
testemunho de espiritualidade e de apostolado

             A vocação vicentina  não  abrange  só  o serviço aos pobres, mas
também a entrada em comum no grupo: a Conferência de São Vicente de Paulo. É aí e a partir daí que, o mais das vezes com a ajuda de um assistente eclesiástico, é explicada, meditada, aprofundada, toda essa parte da espiritualidade que se refere às relações entre a pobreza, a justiça e a caridade, como a que viveu São Vicente·de Paulo e que legou a seus filhos na religião. Diz-se de bom grado atualmente que há no serviço ao próximo e sobretudo aos mais pobres, uma espécie de "sacramento", que é a aproximação ao Cristo sofredor, presente nos pobres. Aí se situa o centro da espiritualidade vicentina: ela experimenta, ao mesmo tempo, o que pode significar a presença do Cristo na Eucaristia, como sua presença nos pobres. Esta comporta em si valor de salvação, quer dizer, de acesso ao Reino dos Céus(13) .A espiritualidade vicentina sente como um escândalo o fato de ser-se indiferente à segunda, quando se tem tanta piedade pela primeira!

          Cada um aproveita, segundo a  graça  que  recebe e o acolhimento
interior que lhe reserva. A esperança de todo vicentino, se corresponder à graça, é de chegar ao desejo expresso em uma das orações tradicionais do fim das reuniões: " ... a fim de que, tendo dado aos pobres de todo coração o que possuem, terminem por dar-se a si mesmos": linguagem antiga que exprime a mesma aspiração à vida das beatitudes, isto é, à vida segundo o Evangelho.

          Será um ideal  excessivo e  abusivamente  constrangedor?  Não! A
Regra vicentina não obriga em consciência, e isto pode tranquilizar os mais escrupulosos. A experiência de mais de um século mostra que a aspiração a esse ideal de vida evangélica é expressa, às mais das vezes. por cristãos simples, desprovidos do menor sentimento de heroísmo: camponeses pobres de um país tropical, estudantes oprimidos por seus estudos, operários prostrados de fadiga, responsáveis esmagados por preocupações ...

          É entre os "cristãos médios" que o  sopro do Espírito Santo chama
a maioria para a  Sociedade de São Vicente de Paulo,  e engaja-os, à sua
medida, por vezes além dessa medida, para o serviço aos mais pobres. É um ideal de solidariedade no acesso ao Reino de Deus; é o que há de mais antigo e de mais novo como testemunho apostólico.

Pierre Chouard
Presidente Geral de 1954 a 1969


1) - Lc 6,20; Mt 5,3; Lc 18,15ss; 16, 19-31
2) - Mt 22,34-40; Mc 12,28-33; Jo 13,34s
3) -Jo 15,12-14
4) - Mc 12,41-44
5) - Mt 25,34-36
6) - Mt 26,11
7) - Mt 23,23
8) - Lc 12,22-32
9) - Gal 4,7; Rom 8,15ss.
10) - Rom 5,5
11) -Gal 5,14; Rom 13,8; I Cor 13; I Jo 2,7-11 e 3,11-18
12) -IJo 3,10;Tg 5,1-4
13) - Mt 25,34-36


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