Frederico Ozanam
<><><><><>
A Caridade e as Letras
É trabalho por demais fascinante, se abeirar de uma vida e,
vencendo o tempo e afastando as brumas do passado, seguir sua trajetória até
vê-la se projetar na Eternidade!
E nessa pesquisa, que é busca afanosa,
debruçar sobre os que se foram e vê-las ressurgir novamente, revivendo seus
anseios, suas dúvidas e suas esperanças!
Esse fascínio se avoluma, cresce, se
agiganta, quando, nessa comovente volta ao passado, deparamos com existências
cujo destino, traçado por Deus, foi bem realizado e cumprido.
A vida de Frederico Ozanam é dessas que prendem o coração!
Diante da nobreza de seu porte e da irradiante beleza de sua
alma debruçada sobre as criaturas a exercer a caridade, Lamartine o compara,
no seu linguajar de poeta, "aos sóis do Oriente que pulverizam de orvalho
as manhãs e as tardes."
"- Frederico Ozanam, dizia o mavioso rouxinol da
França, trazia em torno dele, um halo de ternura pelos seres humanos! Ele
respirava e aspirava uma atmosfera perfumada que vinha do céu e que nos impelia
a lhe entregar o coração e a receber o seu!"
É o próprio Ozanam que, no alvorecer de seus vinte anos,
abre o coração para confiar o segredo de sua vida, sempre voltada para Deus:
"- Estamos neste mundo para cumprir a vontade da Divina Providência! Essa vontade se cumpre
dia a dia, e aquele que morre deixando seu trabalho inacabado está tão avançado
aos olhos da suprema justiça, como o que tem a ventura de cumpri-la, toda
inteira!"
Verdadeiro manancial de emoções, a breve porém fecunda
existência de Frederico Ozanam, continua a encantar os que dela se aproximam.
Desde a infância privilegiada desabrochando num lar cristão,
quando já os primeiros lampejos de sua invulgar inteligência principiavam a
luzir; menino - poeta entrevendo a vida através de seus maviosos versos;
estudando ao lado de Mestres que souberam, louvado Deus! alentar ainda mais o
fogo sagrado que trazia; cursando Direito, em Paris e no fragor da grande
cidade, sabendo cercar-se de boas e saudáveis amizades; vencendo suas dúvidas e
vacilações para afirmar, com desassombro, que devotaria todos seus dias ao serviço
da verdade que lhe havia dado a paz; discutindo e vencendo o materialismo dos
professores da Sorbonne; deixando sua bela alma mergulhar na infinita doçura da
caridade e assim, fundando com zelo verdadeiramente apostólico, a Sociedade de
São Vicente de Paulo; batalhando pelas grandes causas: propondo a seus amigos
o grande movimento dos corações e dos espíritos para o céu; orando e
escrevendo, ensinando e convencendo, a vida de Frederico Ozanam, devorada pelo
amor de Deus, arrebata nossa imaginação e nos faz cair de joelhos!
*"*
Focalizando a figura extraordinária deste homem de Deus,
constatamos que duas grandes e nobres paixões disputaram os anseios de sua
bela alma: a caridade e as letras.
Uma e outra fizeram seu coração transbordar
em frutos esplendidos! E de tal forma ambas se entrelaçaram, se uniram e se
harmonizaram em sua vida, que puderam florescer na maís eloquente afirmação de
tão exuberante personalidade.
Se em Frederico Ozanam a caridade foi o traço marcante
de seu caráter, a poesia nela encontrou poderosa expressão.
Na verdade, senhores, o que é a caridade senão a mais bela
poesia do coração?
Eminente homem de letras, burilando seus versos ou
rendilhando suas obras num estilo claro e fascinante, onde as imagens nasciam
de sua pena, espontâneas e fecundas, Ozanam subordinou todas as manifestações
do seu talento, na trilha luminosa da fé.
E afirmava em seus versos:
"Eu sou um operário
Um obscuro mercenário
Trabalhando humildemente
Na oficina do Pai!"
"- Para o artista cristão, dizia ele, a inspiração tem
um nome sagrado: a graça!"
Essa poderosa força do Infinito, Ozanam a soube receber como
de Deus e foi tesouro que fez frutificar, e de tal modo que Lacordaire
exclamava extasiado, traçando seu perfil:
"- Não existiu musa que não habitasse dentro dele!"
E em todas elas, acrescentarei humildemente, Ozanam foi poeta!
- "Quando o homem quebra pela virtude as cadeias dos
sentidos e espiritualiza de certo modo sua carne, a palavra humana não encontra
mais expressões assaz delicadas, tão ardorosas, capazes de traduzir o que há de
celeste em seus sentimentos.
Torna--se necessário uma linguagem que o aproxime dos anjos!
Encontramos assim os admiráveis salmos do Santo rei David e
as obras poéticas dos profetas da antiga Lei. É este o linguajar da Igreja, na
maioria de seus cantos litúrgicos!
A prosa, por mais eloquente que seja, é
apenas a interprete da razão; a vida sobrenatural e o amor divino necessitam, para
se expandir, do ritmo e do canto, - duas asas que as elevam de certo modo ao
céu.
Assim, enquanto a eloquência permanece no púlpito perto da porta e do
povo, a Igreja dá à poesia o primeiro lugar em seu culto, nos coros de suas
basílicas e aos pés do altar!"
(Vie de Frederico Ozanam)
Possuindo em prosa os dotes de um poeta de rara sedução, é
assim que o vamos surpreender, ainda criança, a ouvir enlevado, seus irmãos
mais velhos recitarem as Fábulas de La Fontaine, cujos versos repetia antes
mesmo de aprender a andar!
E ele que mais tarde descobriria ao mundo a poesia
franciscana; ele que lia, chorando, os versos de Jacopone, e se extasiava
diante das magnificências da Divina Comédia, dizia cheio de unção:
- "A Providência suscita poetas nas sociedades que tombam do
mesmo modo que põe ninhos de pássaros nas ruínas".
Vivendo numa época em que a impiedade se tornava por vezes
repugnante, Ozanam se compungia e, escrevendo a um amigo, confessava:
- "Há cinco anos, um pensamento me atormenta e não me
deixa: o desejo defundar uma sociedade cujo fim seria o de glorificar a
religião através das artes e regenerar as artes, através da religião."
De asas abertas e enamorado do Infinito, louvando a Deus em
seus gorjeios, Frederico Ozanam era, nas
ruínas da França que ele deplorava, ave canora a serviço da Providência!
Acerquemo-nos, por breves instantes do seu canto. Grande
devoto da Virgem, ainda menino Ozanam testemunhava seu terno amor e sua filial
confiança, depositando aos pés de tão excelsa Senhora, estes versos escritos em
latim e mais tarde traduzidos por M. Legeay:
Ó Rainha coroada de estrelas
E de teu coração, expulsa o pesar!
Enxuga essas lágrimas que banham teu rosto
Pois toda côrte celeste te enaltece
E o coro dos Anjos canta doces melodias!
Deixa, ó Virgem, em teu coração
Tão duramente provado, entrar a alegria!
E não lembre tua dor senão, para sentir felicidade!
O Homem Deus que quis nascer de Virgem Imaculada
Venceu seus inimigos e subjugou a morte!
Ele ressuscitou! Voltou aos tabernáculos eternos!
E te precedeu, ó Virgem, no palácio do Seu Pai!
Aquele que viste, com tamanha dor, pregado numa cruz,
Manchada com teu sangue! Te precedeu, ó Virgem!
Adornada com a corôa do triunfo!
Vá lhe prodigalizar tua ternura
Mas não te esqueça, ó Mãe! Não te esqueças jamais
Daqueles que na terra, tanto amaste!
Pensa em nós que aqui ficamos! Interpreta nossos votos
E lembra que um Filho tão poderoso
Nada pode recusar à sua Mãe!"
Místicos e profundos, porém sempre livres dentro das
exigências da forma e das subtilezas do ritmo, os versos de Frederico Ozanam,
são versos cuja limpidez, a tradução mais superficial e imperfeita jamais
conseguiria empanar.
Cantando em todas suas rimas, as glórias do Infinito, eles
fluem docemente, sonoros, borbulhantes como as águas de uma fonte, como o
marulho do mar!..
Escutemos, cheios de unção, a musa inspirada do poeta:
“... Eu vi a Santa
Virgem em todo seu esplendor!
Os serafins que guardavam os tesouros do Senhor
Sobre ela espargiam os dons da alegria!
Sua fronte resplandecia, de uma tão doce beleza.
Que entre os santos não havia
Nenhum assim, semelhante a Deus!
O Arcanjo que um dia havia anunciado
Que nasceria Jesus, estava diante dela
De pé, e desdobrando suas asas de ouro, cantava!
O coro dos eleitos, todo inteiro, se agitava
E do céu, encantado, enchendo os espaços,
Mil vozes repetiam: Salve! Cheia. de graça!
* * *
Para que não se afaste de nós a mística doçura destes versos, relembremos, enternecidos, os que o poeta ainda criança escrevia, em
honra da Ascensão do Senhor:
.
“... Quem é aquele
que no esplendor do dia
Se eleva assim, para o céu? Suas roupagens
Cintilam! Seu rosto se transfigura
Que majestade brilha em sua fronte
E como seus cabelos sagrados exalam celeste perfume!
O dia memorável! O magnifico e glorioso triunfo!
Cristo pisa o inferno vencido,
Sobe, radioso à morada de Seu Pai
E, alçando voo, deixa nossa terra,
Dando um último olhar às montanhas
Que vão se afastando, e Se aproxima
Assim foi seu esplendor, foi sua glória
Quando com Ele levando os despojos da morada infernal,
Vencendo a morte, Cristo ressuscitou!
O sol jamais brilhou com tanta luz,
Nem ao meio dia seus raios iluminou
A terra com igual fulgor!
Em vão o espírito das trevas estremece de horror,
Em vão o inferno chora as perdas que sofreu!
.É inestimável o triunfo d'Aquele que desfez
Os justos que salvou, seguem o Libertador,
E, formando cortejo digno de um rei,
Celebram seus louvores com cânticos de alegria!"
Por vezes, Ozanam emprestava o calor de seus versos a outros
motivos.
Ei-lo, ainda discípulo de M. Legeay, dedicando estrofes a um
pássaro prisioneiro:
"- Pequena cotovia tu serás
Agora, o motivo destes versos!
Minha musa cantará teus dissabores
Pois se, há pouco, cantavas livremente,
Hoje eu te encontro prisioneira! "
E assim, ele continua relembrando o tempo em que o pássaro
cativo, com seus melodiosos gorjeios, cantava as graças da natureza e a festa
das flores...
"Seus trinados, que os pastores
inutilmente buscavam
imitar com suas flautas,
cessam de encantar os ares,
quando a negra armadilha
sobre ele se fecha."
E o menino poeta conclui, com admirável amadurecimento:
"ó pequena cotovia! Aprendi tua lição!
Fugirei da humilhação
E dos perigos da indolência". ..
Divagando em outros versos, Ozanam descreve o bucolismo dos
campos onde ele encontra tranquilidade e paz. E termina, confessando:
"- Eis o que basta para me fazer feliz:
Um pequeno recanto de aspecto risonho,
Um jardim onde eu veja frutos e flores,
Uma fonte viva e pura,
E o coração de um amigo fiel !...”
O que o menino poeta sonhava, burilando suas rimas e improvisando
os seus versos, a vida lhe concedeu mais tarde, com abundância.
No recanto silencioso de sua alma, pôde sorver a água viva
da fonte inesgotável que é o amor de Deus! O céu lhe pertence, pois as flores
da caridade que fez desabrochar na terra, ainda hoje produzem frutos de
apostolado. Não um, mas milhares de corações vicentinos lhe são fiéis!
Através dos versos que escreveu, desde cedo descobre-se o
pensador profundo e o filósofo cristão que os anos revelariam.
Saboreemos estas estrofes, que como flores extemporâneas
brotam do coração predestinado de uma criança de treze anos!
ODE SOBRE A BREVIDADE DA VIDA
Ó Infelicidade do homem!
Mal deixa de chorar em seu berço
E já caminha, tremendo, para a sepultura!
Morre, quando apenas principia a viver! ...
Oh! Por que não procuramos o repouso da alma
Nos curtos momentos que a vida sorri?
Por que não nos valemos desse dom celeste
Para praticar a virtude? Por que?
O tempo possui asas, para voar e fugir
E não tardará a nos levar! ...
Aos quinze anos,
Ozanam já havia composto um pequeno volume de versos latinos, onde depositou a
enternecida oferenda:
"Ao melhor dos pais, o testemunho de amor e respeito
filial”.
E sob o desenho de uma lira, escreveu:
"Minha lira é pequena, mas será afortunada se vos puder
agradar!"
Depois, colocou terna dedicatória à sua progenitora:
"A mãe querida, testemunha de meu reconhecimento e
respeito" - com uns versos endereçados ao pai:
"Não despreze as primícias de meu trabalho! Não seja
juiz, mas Pai!"
Por fim, confessava Ozanam, com muita graça:
"- Querida mamãe: É ainda este estabanado escolar que
vos aborrece com seu latim..." "Acolhei-o, com indulgência pois o
acostumastes a crer que tudo que vos oferece vos é agradável".
"Aliás, ele vos paga com a única moeda que sua bolsa lhe
permite oferecer...” Recebei-a com os votos que vos faz, vosso filho Frederico
Ozanam."
Os anos fugiam céleres e o poeta vicentino, sempre mais se
inspirava. Entre seus inúmeros trabalhos citaremos os versos que escreveu,
narrando a dor de Jeremias, a se lamentar sobre as ruínas de Jerusalém; as
traduções em latim, de Tasso, e outros mais.
Seus ensaios poéticos cada vez se tornam mais notáveis. Lamartine o louva como poeta. Lacordaire
relembra que a poesia o consagrou desde a infância.
Pela exiguidade elo tempo, citaremos apenas os versos oferecidos
a seu pai, à 1º de Janeiro de 1831:
O NOVO ANO
"... Assim como
o viajante, à margem do rio
Faz parar o seu barco e se assenta no chão,
Com a fronte inclinada para a onda que foge
E com um olhar a acompanha,
Assim, também, arrastando nosso destino,
Vão-se os dias, vão-se os anos!
Para vê-los passar eu me assento
E sonho por um instante! ...
Adeus primeiros anos de ventura,
Primeiros anos de vida!
Como bons amigos que não voltam mais,
Recebei, partindo, minha saudade!
Convosco partem infantis prazeres
Desfolhando as flores que adornavam...
Levais tudo, até a dor!
Só não levais a lembrança, guardada no coração!
A memória de um filho é grande, é sincera,
A profundeza da alma é que faz seu santuário.
O tempo pode correr! Ela permanecerá, para sempre!
Sê bendito, ano novo que começas
Carregado de desejos e esperanças!
Trarás para a pobre humanidade
Um sol mais brilhante, dias mais serenos?
Escuta meu desejo e dá, ó eu te peço,
Felicidade e paz, à minha Pátria
Aproxima os espíritos: sufoca em teus braços
O demônio do sangue e dos combates!
Aqueles cuja doce bondade
Cercou minha infância e minha mocidade,
Concedei uma brisa amena que os conduza ao porto
E enchei, e transbordai de mel a sua taça!
Dai-me à mim, seu filho, força e luz
Para percorrer, sem cair, uma longa carreira!
Deixai-me levar frutos de bondade,
E oferece-los,
Pagando a dívida de meu amor!
Estes maravilhosos versos, Ozanam compunham aos 17 anos. Escutemos
o testemunho de seu irmão, narrando em sua biografia:
"- Ozanam já trazia os germes de suas eminentes qualidades
que desabrocharam mais tarde sob o calor de sua palavra de mestre e sob sua
pena de escritor.
Pensamentos profundos, filosóficos, estilo sempre colorido de
imagens vivas e surpreendentes, porém sempre enérgicas e concisas.
Sem outra pretensão senão a de exprimir suas ideias, tais
como as sentia e concebia, e de comunicar aos outros o entusiasmo e a
sinceridade de suas convicções, era o que o animava.
Enfim, acima de tudo, era a defesa da fé e da Pátria que o
preocupava sem descanso!"
Enfeixaremos estas considerações traduzindo os versos que
Frederico Ozanam escrevia, poucos meses antes de morrer, em sua estadia em
San Jacopo, onde fora em busca de repouso. Dizia ele à esposa:
"- Sobre os escolhos longínquos, nossa nau encalhada
Espera a onda salvadora que a levará ao porto!
E a Senhora à qual a barca foi consagrada
Parece surda aos nossos rogos e o Menino Jesus, dorme!
Há doze anos, sob tão doce proteção,
Partimos cheios de esperança. Flores te adornavam
A fronte! E bem depressa, para encantar e abençoar
Nossa viagem, na popa se assentou um pequeno
Depois desse tempo, o céu se escureceu sobre nós.
Os ventos sacudiram nosso barco, noite e dia,
Mas nos não vimos tão cruéis tormentas,
Nem climas tão rigorosos, onde se extingue o amor.
Não! Não! Eu não quero temer sobre vossa guarda,
Companheiros do exílio que Deus me preparou!
Já de olhar clemente a Virgem nos contempla;
A qualquer instante, Jesus acordará!
E nos levará então sobre um mar calmo,
Sem medo e sem esforços, chegamos, enfim,
A margem, onde os amigos, multidão ardente encantadora,
Apontam nossa vela e nos estendem a mão!
Senhores:
Carlyle exprimiu certa vez, este pensamento:
"- Nada no mundo tem unicamente o valor de um instante.
As palavras não se extinguem completamente no espaço; o suspiro do coração,
qualquer sacrifício da vontade não desaparece sem deixar vestígio. Tudo se
destina à Eternidade!
Nenhum trabalho, comum ou extraordinário, perece
completamente; não se perde a menor ação. Como o pequeno filete de água que
brota debaixo da terra e de seu lugar escondido torna verde a erva; continuando
seu curso, une-se a outros pequenos rios e, num belo dia, surge sob a forma de
fonte vitoriosa!"
E sua vida, o mais belo poema que escreveu!
Rendilhado pela graça divina, que desceu em catadupas sobre
sua alma, em cada verso desse poema, ele prendeu a rima da oração e a poesia da caridade.
Neste mundo, Frederico Ozanam, não passou em vão!
REGINA MELlLLO DE SOUZA
Junho de 1958