CATEQUESE DO PAPA:
AMAR A DEUS SEM PEDIR NADA EM TROCA
Intervenção na audiência geral sobre São Francisco de Sales
CIDADE DO VATICANO ( quarta-feira, 2 de março de 2011
(ZENIT.org) -
Apresentemos, a seguir, a catequese dirigida pelo Papa aos
grupos de peregrinos do mundo inteiro,
reunidos na Sala Paulo VI
para a audiência geral.
Queridos irmãos e irmãs:
"Dieu est le Dieu du coeur humain " (Deus é o Deus do coração humano -
"Tratado do Amor de Deus", I, XV).
Com estas
palavras, aparentemente simples , temos a essência da espiritualidade de um grande
mestre, de quem eu gostaria de vos falar hoje: São Francisco de Sales,
bispo e Doutor da Igreja.
Nascido em 1557, em uma região de fronteira francesa
, era o filho do Senhor Boisy,
de uma família antiga e nobre de Saboia. Viveu
dividido entre dois séculos; o XVI e XVII, recolhendo em si o melhor dos ensinamentos e das conquistas culturais do século que terminava,
reconciliando a herança do humanismo com a tendência ao absoluto, própria das
correntes místicas.
Sua formação foi muito completa; em Paris, cursou o ensino
superior, dedicando-se também à teologia; e na Universidade de Pádua , fez os
estudos de jurisprudência, com o seu pai desejava, concluindo-os
de forma brilhante, com doutorado em utroque iure, direito canônico e direito civil.
Em sua harmoniosa juventude, refletindo sobre o pensamento de Santo Agostinho
e São Tomás de Aquino, teve uma profunda crise, que o levou a questionar
sobre sua própria salvação eterna e sobre a predestinação de Deus com relação
a ele, sofrendo como drama espiritual verdadeiro as principais questões
teológicas da sua época.
Ele orava intensamente, mas a dúvida o atormentou de ta!
forma que, durante várias semanas, quase não comeu nem bebeu. No final da
provação, foi para aigreja dos dominicanos em Paris e, abrindo o coração, orou desta maneira:
"Aconteça o que acontecer, Senhor, tu, que tens tudo em tuas mãos, e cujos
caminhos são a justiça e a verdade, o que quer que tenhas
decidido para mim". Tu que és sempre juiz justo e Pai misericordioso, eu te amarei, Senhor (...), eu te amarei aqui meu Deus, e esperarei sempre
em tua misericórdia, e repetirei sempre teu louvor ... Ó Senhor Jesus! sempre
serás a minha esperança e a minha salvação na terra dos vivos" (I
Proc. Canon., VoI. I, artigo 4).
Par volta dos 20 anos, Francisco encontrou a paz na
realidade radical e libertadora do amor de Deus: "amá-Ia sem pedir nada em troca
e confiar no amor divino; não perguntar mais o que Deus vai fazer comigo:
eu simplesmente o amo! "independentemente do que Ele me der ou
não me der". Assim, ele encontrou a paz e a questão da predestinação -
sobre a qual se discutia há muito tempo - se resolveu! porque ele não
buscava mais o que poderia obter de Deus; apenas o amava, abandonava-se â sua
bondade. Este foi o segredo da sua vida! que aparecerá em sua obra mais
importante: o "Tratado do amor de Deus".
Vencendo a resistência do seu pai, Francisco seguiu o
chamado do Senhor e, em 18 de dezembro de 1593, foi ordenado sacerdote. Em 1602,
ele se tornou o bispo de Genebra, em um período em que a cidade era um
ponto forte do calvinismo, tanta que a sede episcopal se encontrava
"exilada" em Annecy.
Pastor de uma diocese pobre e conturbada, em um enclave de
montanha do qual conhecia bem tanto a dureza como a beleza, escreveu:
"Encontrei-me com EIe (Deus), cheio de doçura e ternura, entre nossas
altas e escarpadas, montanhas, onde muitas almas simples o amavam e o adoravam
com toda verdade e sinceridade; o cervo e a gazela corriam aqui e
ali, entre o gelo terrível, para anunciar seu louvor".(Carta à mãe
de ChantaI, outubro de 1606, em Oeuvres, Ed. Mackey, t. XIII, p . 223).
E, no entanto, a
influência da sua vida e dos seus ensinamentos na Europa da época foi imensa. Ele foi apóstolo, escritor, pregador, homem de ação e oração; esteve comprometido
com os ideais do Concílio de Trento, envolvido na controvérsia e
no diálogo com os protestantes, experimentando cada vez mais, muito
além do necessário confronto teológico, a eficácia da relação pessoal e da caridade; foi também encarregado de missões diplomáticas a nível europeu e de
deveres sociais de mediação e reconciliação. Mas, acima de tudo, São Francisco de Sales é um pastor de almas: do encontro com uma jovem mulher, a senhora
de Charmoisy, inspirou-se para escrever um dos livros mais
populares da era moderna, a "Introdução à vida devota"; de sua
profunda comunhão espiritual com uma personalidade excepcional, Santa Joana Francisca
de Chantal, nasceu uma nova família religiosa, a Ordem da Visitação,
caracterizada - assim como quis o santo - por uma consagração total a Deus, vivida na simplicidade e humildade , em fazer extra- ordinariamente bem as coisas ordinárias: "Quero que minhas filhas - escreveu ele -
não tenham outro ideal a não ser o de glorificar [Nosso Senhor] com sua humildade" (Carta a Mons. De Marquemond, junho de 1615). E!e morreu em 1622, aos
55 anos, após uma existência marcada pela dureza dos tempos e pelo desgaste
apostólico.
A vida de São Francisco de Sales foi relativamente curta,
mas vivida com grande intensidade. Da figura deste santo emana uma
impressão de estranha plenitude, demonstrada com a serenidade de sua busca intelectual, também na riqueza dos seus afetos e na "doçura" de seus ensinamentos, que foram muito influentes na consciência cristã. Da palavra
"humanidade", ele incorporou diferentes significados e, então como agora; este
termo pode se referir à cultura, à cortesia, à liberdade e ternura, à
nobreza e solidariedade.
Em sua aparência, tinha algo da majestade da paisagem em que
viveu, conservando também a simplicidade e a natureza. As antigas
palavras e imagens com que se expressava são ouvidas de forma
inesperada, também pelo homem atual, como uma língua materna e familiar.
A Filotéia), destinatária ideal de sua "Introdução à
vida devota (1607), Francisco de Sales dirige um convite que podia parecer, na
época, revolucionário. É o convite a ser totalmente de Deus,
vivendo em plenitude a presença no mundo e os deveres do próprio estado. "Minha intenção é instruir aqueles que vivem na cidade, no estado civil, no tribunal ( ... )" (Prefácio da "Introdução à Vida Devota"). O documento com o
qual o Papa Leão XIII, mais de dois séculos depois, o proclamou Doutor da Igreja
insistirá nesta ampliação do chamado à perfeição , à santidade. Nele, escreveu:
"[A verdadeira piedade] penetra até no trono de reis, na barraca dos chefes dos
exércitos, no tribunal dos magistrados, nos escritórios, nas lojas e até nas cabanas
dos pastores ( ... )" (Breve Dives in misericordia, 16 de novembro de
1877).
Assim nasceu o chamado aos leigos, esse cuidado pela consagração das coisas
temporais e pela santificação da vida cotidiana, em que insistirão o
Concílio Vaticano II e a espiritualidade do nosso tempo. Manifestava-se no ideal de
uma humanidade
reconciliada, na harmonia entre ação no mundo e oração,
entre condição leiga e busca da perfeição; com a ajuda da graça de Deus, que
permeia o ser humano e, sem destruí-lo , purifica-o, elevando-o às
alturas divinas.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhz7CLOOfnFkMYIxCZcb4-64lOjzeb81K1NZ52OVvSPWY-jD_9bWg4Ith2PBuOsuh7ng5UKBOFylxYejs4GXBXORo_Dr1FsllMdXDSQTRHXheqpdFsBkF4jfohPmW9AwmrIexnu1Nv5j9w/s320/SFS.jpg)
ATeótímo, o cristão adulto, espiritualmente maduro, a quem
dirigirá, alguns anos mais tarde, o seu "Tratado sobre o amor de
Deus" (1616) São Francisco de Sales oferece uma lição mais complexa. Esta supõe, no
início, uma precisa visão do ser humano, uma antropologia: a "razão"
do homem, mesmo a "alma racional", é vista como uma arquitetura harmoniosa; um
templo articulado em mais espaços! em torno de um centro, que ele chama, juntamente com os grandes místicos, de "cume", "ponta" do
espírito ou "fundo" da alma. É o ponto em que a razão, percorridas todas as fases,
"fecha os olhos" e o conhecimento se torna uma só coisa com o amor (cfLivro I,
capo XII). Que o amor, em sua dimensão teológica, divina! seja a razão de ser
de todas as coisas, em uma escala ascendente que parece não conhecer
rachaduras ou abismos. São Francisco de Sales resumiu com uma frase
famosa: "0 homem é a perfeição do universo, o espírito é a perfeição do homem, o amor é a do espírito, e a caridade é a do amor" (ibid., livro XI, cap. I).
Em um tempo de florescimento místico intenso, o
"Tratado do amor de Deus" é uma verdadeira e própria summa, além de uma fascinante
obra literária. Sua descrição do itinerário até Deus parte do reconhecimento
da “inclinação natural" (Ibid .; livro 1, cap . XVIL inscrita no
coração do homern , ainda que pecador, de amar a Deus sobre todas as coisas. Segundo o
modelo da Sagrada Escritu ra , São Francisco de Sales fala da união entre Deus
e o homem desenvolvendo uma série de imagens das relações
interpessoais. Seu Deus é pai e senhor! esposo e amigo! tem características maternas e
de cuidadora, é o sol do qual a noite é a misteriosa revelação. Uma espécie
de Deus que atrai para si o homem com laços de amor, ou seja, de
verdadeira liberdade: "Já que O amor não força nem tem escravos, mas reduz todas as
coisas sob a própria obediência com uma força tão deliciosa que, se nada é forte
como o amor,nada é tão amável como a sua força" (Ibid.. livro 11
capo VI).
Encontramos, no Tratado do nosso santo, uma meditação
profunda sobre a vontade humana e a descrição do seu fluir, passar, morrer,
para viver (cf.ibdd.; Livro IX, capo XIIIL no completo abandono! não só à
vontade de Deus! mas também ao que lhe agrada! ao seu "bon
platstr", à sua satisfação (cf. ibid., Livro IX, capo I). No cume da união com Deus, além
dos raptos de êxtase contemplativo, coloca-se esse rebrotar da caridade
concreta, que está atenta a todas as necessidades dos outros e que ele chama de
"êxtase da vida e das obras" (íbld., livro VIII capo VI).
Adverte-se bem, lendo o livro sobre o amor de Deus e, ainda
mais, nas cartas de direção e amizade espirituais! que São Francisco de Sales
foi um grande conhecedor do coração humano. A Santa Joana de Chantal, ele
escreve: "Esta é a regra da nossa obediência! que vos escrevo com letras
grandes: FAZER TUDO POR AMOR, NADA PELA FORÇA - AMAR MAIS A
OBEDIÊNCIA QUE TEMER A DESOBEDIÊNCIA. Deixo-vos o espírito de liberdade,
não o que exclui a obediência - pois esta é a liberdade do mundo - mas o
que exclui a violência, a ansiedade e o escrúpulo" (Carta de 14 de
outubro de 1604). Não é atoa que, na origem das muitas vias da pedagogia e da
espiritualidade do nosso tempo, encontramos vestígios desse mestre, sem o qual
não teriam existido São João Bosco nem o heroico "pequeno caminho" de Santa Teresa de Lisieux.
Queridos irmãos e irmãs,. em uma época como a nossa, que busca liberdade, também com violência e inquietude, não se pode perder a
atualidade deste grande mestre de espiritualidade e de paz, que indica aos
seus discípulos o "espirito de liberdade", a verdadeira , como eu
me de um ensinamento fascinante e completo sobre a realidade do amor, São
Francisco de Sales é um testemunho exemplar de humanismo cristão e, com seu
estilo familiar, com parábolas que têm frequentemente o bater de asas da poesia,
recorda que o homem carrega gravado nas profundezas de seu ser o anseio
por Deus e que só n'Ele se encontra a verdadeira alegria e sua realização
mais plena.
No final da audiência, o Papa cumprimentou os peregrinos
em vários idiomas.
Em português , disse:
Queridos irmãos e irmãs:
São Francisco de Sales, bispo e doutor da Igreja, é uma
testemunha exemplar do humanismo cristão, cujos ensinamentos influenciaram
muitos caminhos espirituais e pedagógicos do nosso tempo. Nascido em 1567, passou na juventude por uma crise espiritual que o levou a
interrogar-se sobre a própria salvação eterna. Somente encontrou a paz na contemplação da
realidade radical e libertadora do amor de Deus: amar-Lhe sem pedir
nada em troca e confiar no amor divino. Tal foi o segredo da sua vida. Esta
se caracterizou por um incansável apostolado, pela pregação, escritos e,
sobretudo , pela sua direção de almas, dentre as quais se destaca Santa Joana
Francisca de Chantal, fundadora com ele da Ordem da Visitação. Suas
principais obras são "Introdução à vida devota" e "Tratado do Amor
de Deus". Nelas o nosso Santo dirige a todas as pessoas o convite a serem completamente de Deus, mesmo
vivendo no meio do mundo, pelo amoroso cumprimento dos
deveres do próprio estado de vida: trata-se daquela consagração das
coisas temporais e santificação do quotidiano que, quatro séculos mais tarde
, afirmaria insistentemente o Concílio Vaticano II.
Queridos amigos vindos dos países de língua portuguesa, sede bem-vindos! São Francisco de Sales lembra que cada ser humano traz
inscrito no íntimo de si a nostalgia de Deus. Possais todos dar-vos conta dela e
por ela orientar as vossas vidas, pois só em Deus encontrareis a verdadeira alegria e a realização plena. Para tal, dou-vos a minha bênção. Ide em paz!
[Tradução: Aline Banchieri.]
“Nascemos para buscar a felicidade. Por isso, nosso pobre coração, ao correr atrás das criaturas, corre ansioso, crendo poder satisfazer seus desejos; mas apenas os alcança, comprova sua vaidade e não se satisfaz (…) Minh’alma, se tu podes conhecer e amar a Deus, por que buscas contentamento em coisas menores? Se podes alcançar a eternidade, por que paras no tempo? És capaz de Deus. Desgraçada és se te contentas com menos”
São Francisco de Sales