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PEREGRINA
NA FÉ E PERFEITA DISCÍPULA:
MARIA EM LUCAS
Lucas é um habilidoso
artesão da Palavra de Deus. Costura o seu evangelho sobre o tecido do evangelho
de Marcos. Junta-o com muitos retalhos de pregações de Jesus, como o sermão da montanha (Lc 6). Acrescenta várias parábolas, especialmente sobre a misericórdia de Deus (Lc
15). Põe em destaque a preferência de Deus pelos pobres e a necessidade de
cultivar a justiça. Exalta a alegria como o grande sinal da presença do Reino
de Deus. Faz o elo entre as esperanças judaicas e a salvação cristã, estendida
a todos os povos. Mostra a bondade Infinita do Pai, na ação de Jesus, animada
pelo Espírito. E, especialmente, pinta os traços da figura de Maria.
Normalmente, os católicos
dizem que Maria é importante porque foi a mãe de Jesus. Lucas mostra que não está ai a sua principal qualidade. Vamos entrar no evangelho de Lucas, passear por ele, olhar as costuras e os
detalhes, percebendo o que diz sobre Maria.
1. MARIA, A DISCÍPULA DO SENHOR
Jesus é o Messias e o Salvador (Lc 2,11). Inaugura o Reino de Deus, novo tempo de felicidade e alegria para todos, especialmente para os pobres (Mc 1,15; Lc 4,18, 5,20s; 8,1). Fala e mostra como Deus Pai é tão bom, ao acolher e perdoar os pecadores (Lc 7,36-49). Mas Jesus não realiza sozinho essa missão. Desde o começo, chama algumas pessoas para segui-lo mais de perto. Convoca Simão e Levi (Lc 5,11.27), que renunciam a tudo para ir com ele. Depois de rezar muito, Jesus escolhe os doze (Lc 6,12-16), que estão mais perto dele, dia e noite, aprendendo a viver de outro jeito a relação com Deus e com os outros. Além dos doze apóstolos, algumas mulheres acompanham a Jesus (Lc 8,2s). E há ainda um grupo de 72 discípulos (Lc 10,1). A todos Jesus envia em missão (Lc 9,1-6; Lc 10,1-11), para que testemunhem a misericórdia de Deus e anunciem o seu Reino.
Jesus acolhe pessoas muito
diferentes. Oferece a todas elas a possibilidade de se tornar seus discípulos, aprendizes na arte de viver o amor de Deus.
Não importa a vida passada, a fama, a riqueza ou a instrução. Pode ser um
pescador, um cobrador de imposto ou mesmo uma prostituta. Na explicação da
parábola da terra e das sementes, Jesus deixa claro que o seu seguidor
necessita desenvolver algumas atitudes básicas:
Os que caíram em terra boa são aqueles que, ouvindo com um coração
bom e generoso, conservam a Palavra e dão fruto pela perseverança
(Lc 8,15).
Assim, três palavras-chave
resumem a condição de ser discípulo de Jesus: ouvir, guardar, frutificar. Com esse molde nas mãos, Lucas vai pintar os
traços da figura de Maria. Mostra que ela tem exatamente as qualidades que
caracterizam o seguidor de Jesus. Maria ouve a palavra de Deus com fé, guarda
no coração e a põe em prática. Vejamos.
1.1. MARIA ACOLHE A PROPOSTA DE DEUS (LC
1.26-38)
Você Já deve ter lido
muitas vezes a cena da anunciação (Lc 1,26-38). Ela se assemelha a outras cenas
de anúncio de nascimento na Bíblia, como Abraão (Gn 17,19-21) e à mãe de Sansão
(Jz 13,1-6). Está construída em paralelo com o anúncio do nascimento de João
Batista ao pai Zacarias (Lc 1,5-20). Em todos os relatos citados, temos um
gênero literário com os mesmos elementos. Compare-os. Sempre Deus toma a
iniciativa. Anuncia que virá uma criança importante, para contribuir no
processo de libertação e salvação do povo. Às vezes, há obstáculos a serem
superados. A pessoa questiona e Deus lhe oferece um sinal. Mas o anúncio a
Maria, em Lucas, tem algo original. Não só prepara o nascimento de Jesus, mas
também mostra a vocação de Maria e sua resposta generosa.
O enviado de Deus começa
com uma saudação simples: "Alegra-te, cheia de graça" (Lc 1,28). Convida Maria a participar da alegria do novo tempo, que começa com a vinda de Jesus (Lc 1,14.44.58 e 2,10). Lucas destaca a alegria como um sinal próprio de Jesus e de seus seguidores (Lc 10,17.21; 19,37; 24,52). Maria também é chamada a se alegrar.
Maria
recebe um nome especial, que nenhuma outra pessoa tem na Bíblia: "cheia de
graça", ou "agraciada" (Lc 1,28). A seguir, diz-se que "o Senhor
está contigo". Na Sagrada Escritura, quando a pessoa tem uma missão
importante e difícil, recebe de Deus a promessa que não estará sozinha, pois
Ele vai lhe dar força para realizá-la. Veja, por exemplo, na vocação de Isaac
(Gn 26,3.24), de Jacó (Gn 28,15), de Moisés (Ex 3,11s e 4,12), de Gedeão (Jz
6,12) e de Jeremias (Jr 1 ,19). Ao dizer: "o Senhor está contigo",
pede-se que a pessoa não tenha medo, confie em Deus e se comprometa. Assim
também acontece com Maria.
Portanto, as expressões
iniciais colocadas nos lábios do enviado de Deus estão repletas de sentido e
nos falam de Maria e de sua missão:
- Alegra-te:
Maria, venha participar da alegria do tempo do Messias, que está chegando!
- O Senhor está contigo: Você terá uma missão exigente, mas o Senhor estará do seu
lado, dando-lhe força para realizar o que ele lhe pede.
De acordo com o gênero
literário do anúncio, no qual aparece uma dificuldade para realizar a promessa
de Deus, Maria coloca uma objeção: "Como acontecerá isso, se eu não
conheço homem?" (v. 34). A expressão bíblica "conhecer" quer
dizer aqui "ter um relacionamento sexual". A frase expressa uma
situação existencial, não um propósito. Ou seja, não se pode afirmar, com base
no texto de Lucas, que Maria teria feito um voto de castidade antes de receber
a proposta de Deus para ser mãe de Jesus. Tal ideia não aparece no evangelho de
Lucas. Ela surgirá mais tarde, no apócrifo proto-evangelho de Tiago, escrito
provavelmente no final do século 11. E será defendida por muitas pessoas, em
épocas posteriores, como Gregório de Nissa, Agostinho e Jerônimo.
Diante da proposta de Deus, Maria responde prontamente.
O seu "sim" ecoa forte e sem dúvidas, repleto de generosidade. Disponível
a Deus, Maria une a liberdade com a vontade: "Eis aqui a serva do Senhor.
Faça-se em mim segundo a tua palavra" (cf. Lc 1,37). Essa entrega do
coração a Deus tem um nome muito simples: fé. Significa arriscar-se e jogar-se
nas mãos do Senhor com confiança. Na visita a Isabel, esta lhe diz:
§ Feliz aquela que acreditou, pois o que
lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido (Lc
1,45).
Maria não somente ouviu,
mas escutou a palavra, acolheu-a no coração. Abriu seu espaço interior, deixou
Deus entrar. Saiu de si e investiu sua vida num grande projeto, a que se sentiu
chamada. Lucas nos apresenta Maria como a primeira discípula cristã. Com a
anunciação, ela inicia um longo caminho de peregrinação na fé, acolhendo o
apelo de Deus. Aceita a proposta do Senhor com o coração aberto, num grande
gesto de generosidade e de fé.
Como Maria, nós também
recebemos um apelo divino. Temos na lembrança alguma ocasião na vida na qual
Deus nos tocou de forma especial. Um retiro, um encontro, conhecer uma pessoa,
conseguir uma vitória almejada, superar o sofrimento. Situações na qual
sentimos que Deus nos comunicou algo novo, original, forte, que mudou para
melhor nosso caminho de vida. A anunciação a Maria nos lembra de que somos
também agraciados por Deus, que ele está conosco, que nos chama a uma missão, e
que sua presença produz alegria em nós. A vocação de Maria é como um espelho
para a vocação cristã. Olhando para ela, a gente se vê melhor, enquanto discípulo
e seguidor de Jesus.
ORAÇÃO
Senhor, na tua presença me alegro, como uma
criança diante do brinquedo desejado. E tu brincas comigo, e eu contigo.
Em ti me alegro, pois tu és a grande
Boa-Notícia.
Obrigado por receber tantos dons.
Sinto muitos sinais do teu amor
e da tua misericórdia na minha vida.
Assim, venho, agradecido me alegrar na tua
presença.
E, como Maria, digo que podes contar comigo.
Quero ajudar a realizar o teu sonho sobre a
humanidade.
Eis-me aqui, como teu servo.
Eu quero que se faça em mim segundo a
tua vontade.
Tu estás comigo, teu Espírito repousa sobre
mim. Tu estás em mim.
Ouço a tua voz: Alegra-te, agraciado, o Senhor está contigo!
Eis-me aqui!
1.2. Maria guarda a Palavra no coração (Lc 2.19.51)
Por duas vezes Lucas diz que
Maria guarda no coração os acontecimentos e procura descobrir o seu sentido. Na primeira vez, depois do nascimento de Jesus (Lc 2,19). Ela está contente e surpresa, como toda jovem mãe. Deve ter olhado seu bebê e o amamentado com carinho. O menino Jesus está envolvido em panos e deitado no local onde o gado se alimenta.
Então eles recebem a visita dos pastores. Quanta coisa para pensar, para
meditar, para descobrir o sentido. O que vai ser desse menino, como educá-lo bem, de que maneira amá-lo ...
Na segunda vez, o menino
está crescido. É adolescente, um rapazinho com seus doze anos. Curioso, cheio de iniciativa, ousado, Jesus se encontra no templo, conversando com os doutores. Ouve e questiona. Já antecipa,
com esse gesto, o que vai fazer bem mais tarde. Diz uma frase que Maria e José
não compreendem: "Não sabíeis que eu devo estar naquilo que é de meu
Pai"? (cf. Lc 2,46-49). Maria, mesmo sem entender, guarda no coração.
Pensa, reflete, medita, procura o sentido. Conserva a lembrança dos fatos. Faz
memória (Lc 2,51).
Quando o evangelista põe duas vezes essa mesma atitude,
no começo e no fim da "vida familiar" de Jesus, quer dizer que era algo constante
em Maria. Ela cultivava um hábito, um jeito de ser. Maria vive um dos traços
marcantes da espiritualidade do povo da Bíblia: a memória, a recordação. A Escritura
judaica continuamente apela para que, recordando o passado, tenhamos gravado na
mente e no coração como Deus fez maravilhas pelo seu povo, escolheu-o e deu-lhe
uma missão. (Veja, por exemplo, Dt 4,32-40.)
Para ser fiel a Deus e
somente a ele servir, o povo deve sempre recordar que foi libertado do Egito,
da casa da escravidão (Dt 6,12s), que caminhou muitos anos no deserto, passando
enormes dificuldades e sendo educado por Deus (Dt 8,2-5). Que o Senhor fez com
ele uma aliança, válida no passado e no presente (Dt 5,1 -4). A infidelidade e
o pecado começam com o esquecimento. Apaga-se da memória da mente e da memória
do coração como Deus foi misericordioso com o seu povo. Os profetas trazem de
volta a consciência perdida, denunciam o esquecimento, resgatam a atualidade da
aliança. Por isso, clamam com tanta insistência: "Ouvi isto" (Is
48,1), "lembrai-vos"! (Is 46,9). Recordar não é nostalgia, volta
saudosa ao passado. Trata-se de recordar para acordar, tomar consciência,
voltar-se para o Deus da Vida.
Diferentemente de outros
povos, que faziam do culto religioso predominantemente um resgate simbólico do
ciclo da natureza, o povo de Israel cultua a Deus recordando-se da sua ação criadora
e libertadora e renovando o compromisso com a aliança. Muitos salmos são
orações de memória, atualizadas para o presente em forma de súplica, louvor ou
ação de graças (Veja Salmos 44, 48, 78, 80, 85, 95, 98, 105, 135, 136). A recordação
tem um efeito estimulador. No momento do sofrimento, da perseguição e do fracasso,
mostra que a situação atual não é definitiva. Da mesma forma como Deus atuou no
passado, criando a partir do caos e libertando desde a escravidão, irá conduzir
seu povo para um momento novo (cf. Is 43,5-9).
Ao desvendar a
personalidade espiritual de Maria como discípula do Senhor, que ouve e medita os acontecimentos, Lucas está tocando numa característica
básica da espiritualidade bíblica. Mais ainda. Em leitura contemporânea,
diríamos que esse traço de Maria diz respeito a todo o ser humano maduro e
equilibrado.
Vivemos numa sociedade
onde as coisas acontecem com muita rapidez. O ritmo de vida da cidade é acelerado.
Levantar cedo, comer depressa, enfrentar o tráfego pesado, trabalhar e estudar,
e voltar tarde para casa faz parte da rotina de muitas pessoas. E nem o lar é lugar de sossego. Estamos
cercados de sons do rádio e do CD, e do bombardeio de imagens da televisão. Com
toda essa agitação e barulho, temos muita dificuldade em parar e escutar a voz
interior. Então os acontecimentos passam por nós, mas não entram. São como água
de tempestade sobre a terra, que cria enxurrada e erosão, mas não penetra.
Somos parte de um mundo com pouca memória. Fatos Importantes, ocorridos há um ou dois anos, desaparecem da nossa lembrança, como se fossem de um passado remoto. Some-se a isto a sobrecarga de informações, que não temos tempo de assimilar. Vivemos um fenômeno pessoal e social, intimamente relacionados. Somos uma geração que cada vez menos alimenta a consciência histórica. A mídia cria fatos novos, que facilmente desaparecem de cena, dando lugar a outros. Não há tempo para deter-se, refletir, pensar, elaborar. A sociedade moderna gera jovens e adultos que vivem como um barco sem rumo, ao sabor do vento e da maré, pois não assumem sua história individual e coletiva. São conduzidos por outros e não encontram a ocasião de tomar nas mãos o leme de sua existência. Simplesmente não têm tempo para pensar nem se dispõem a criá-lo.
Ora, as pessoas e os povos
somente nutrem a consciência histórica quando refletem sobre os fatos, conferindo-lhes sentido e estabelecendo relação entre eles. E uma existência equilibrada e saudável exige a criação de
um espaço interior, no qual a pessoa vai conectando os acontecimentos e
procurando o seu sentido. Ela percebe, então, que sua vida não é um mero
suceder de fatos, de experiências prazerosas e tristes, de vitórias e fracassos.
Toma consciência dos processos, das metas a estabelecer. Avalia os passos
dados. Saboreia as experiências afetivas e amorosas significativas, faz uma
"memória do coração", que a alimenta nos momentos difíceis. Com isso,
pode manter vínculos afetivos duradouros e profundos. Pois o amor necessita de
memória para não se perder diante das crises.
À medida que a pessoa
exercita essa atitude de "guardar no coração" e "buscar sentido para os fatos", transforma-se num aprendiz, num
discípulo. Quando acontece alguma experiência forte, ela vai além do nível
elementar, da satisfação ou dor. Procura descobrir o que aprendeu com a experiência. Cada novo desafio se transforma
em aprendizagem existencial. Então ela não envelhece. Mesmo que tenha idade avançada,
está sempre aprendendo com a vida. Vai conquistando a sabedoria, que é o
conhecimento com sabor e sentido, o saber que alimenta e unifica a existência.
O homem e a mulher espiritualizados
não se caracterizam pela quantidade de orações e devoções exteriores que praticam. Antes, são seres humanos capazes
de interpretar sua história à luz de Deus e aprender com ela. Percebem os
sinais de sua presença na existência pessoal e social. Cultivam a interioridade
como capacidade de dar sentido e unidade às múltiplas experiências da vida.
Depois do ruído das muitas palavras, entram no silêncio de quem reverencia o mistério
de Deus. Nele repousam e dele buscam forças. Pois a meditação avançada alcança
um estágio no qual escasseiam as palavras e os raciocínios. É entrega e
presença. Recordação orante, silêncio, ação de graças, adoração e louvor.
Se compreendermos assim o
cultivo da meditação como uma dimensão humana indispensável, como o caminho para o auto equilíbrio e ser aprendiz da
existência, descobriremos também um novo sentido para a relação entre ação e contemplação, pastoral e espiritualidade. De um lado, colocamo-nos
à disposição do projeto de Deus, realizando ações eficazes. De outro lado,
precisamos recolher-nos e silenciar. Quanto mais intensa e forte nossa missão,
mais necessitamos "mergulhar em Deus". Como diz o poema do compositor
brasileiro Beto Guedes: "A abelha fazendo o mel, vale o tempo que não
voou".
Maria nos ensina a cultivar
a interioridade, a meditar. Guardar as coisas no coração, buscar sentido nos acontecimentos e preparar-se para o que vai acontecer. Ela se parece com uma abelha que recolhe o néctar de Deus na
vida e o transforma em mel. Colhe, recolhe, elabora e oferece doçura.
Oração
Senhor dá-me memória!
Tantas vezes tu me visitaste, em
quantos momentos fortes senti tua presença!
Como cores vivas de um dia de primavera, ou o cheiro único da pessoa amada. Mas
me esqueci. As cores vivas desbotaram, o suave o misturou a outros. Perdi
a memória? Ou ela está escondida num canto qualquer do armário de meu quarto?
Senhor dá-me a memória da
fé.
Para que os acontecimentos não sejam somente fatos, mas
sinais do teu amor. Cria em mim, Senhor, a atitude de Maria, de meditar e guardar no coração.
Quero crescer no teu amor e manter-me sempre encantado com a vida. Amém.
1.3. Maria. a discípula que dá bons frutos (Lc 1.42·45)
Lucas nos conta que, logo
depois da anunciação, Maria sai às pressas para visitar sua parenta Isabel. Parte de Nazaré, na Galileia, para outra região, a Judeia, distante dali no mínimo 50 quilômetros. Leia o relato de Lc 1,39-45,
que tem muitos elementos simbólicos.
Talvez Lucas não tivesse clara essa intenção, mas o povo
simples, ao ler o texto da visitação, descobre que Maria é missionária.Transbordando da graça
de Deus, não quer retê-la para si. Vai partilhar com sua parenta, de idade
avançada, que está grávida e necessita de cuidados. Discretamente, ela já leva
Jesus para os outros. Isabel sente logo o resultado. O feto se movimenta dentro
dela. Quando se saúdam e se abraçam, o Espírito Santo inunda o ambiente e elas
transbordam de alegria. Maria está cheia de Deus. Isabel também. Nessas duas
mulheres grávidas se encontram, em semente, seus filhos João Batista e Jesus.
Já estão, lado a lado, o precursor e o Messias, o que prepara e o que realiza a
Boa-Nova, o profeta de Deus e o Filho de Deus. Que lindo encontro! Isabel
proclama:
Bendita és tu entre as
mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!
(Lc 1 ,42).
O que significa a frase: "Bendita és tu entre as mulheres"? Lucas
coloca na boca de Isabel um louvor que faz eco de duas passagens das Escrituras
judaicas, nas quais se reconhece a participação de mulheres especiais na luta e
na vitória do povo de Deus. Em Juízes 5,24, bendiz-se a Héber, por participar
da luta contra a opressão dos cananeus, golpeando o homem Sísara. Em Judite
13,18-20 se louva Judite, que com imensa coragem e inteligente estratégia,
eliminou o general do exército da Assíria, Holofernes. Maria é colocada, assim,
dentro da história das mulheres fortes do povo de Israel, que contribuíram para
mudar a sorte da sua nação.
"Bendita"
significa um louvor à pessoa e reconhecimento que ela é destinatária da bênção e do favor de Deus. Reforça o sentido das expressões
"cheia de graça" ou agraciada (Lc 1,28) e "encontraste graça
junto a Deus" (Lc 1,30), do relato da anunciação. "Bendita entre as
mulheres" quer dizer: a abençoada por excelência. Mas isso não significa
um mero privilégio, e, sim, graça que possibilita uma resposta mais intensa ao
apelo de Deus. Em Maria se encontram a gratuidade do amor superabundante de
Deus e a entrega generosa do ser humano, ou seja, a graça e a fé.
"Bendito é o fruto do
teu ventre" significa que a fé torna Maria fértil de corpo e alma. Por causa de sua adesão a Deus, do seu compromisso com o projeto
divino, Maria realiza a bênção de fertilidade prometida ao povo de Deus no
livro do Deuteronômio:
Se
obedeceres fielmente à voz do Senhor teu Deus, observando e praticando todos os mandamentos que hoje te prescrevo, o Senhor teu Deus te elevará acima de todos os povos da terra. Se obedeceres à voz do
Senhor teu Deus, virão sobre ti e te seguirão todas as bênçãos: Bendito serás
na cidade e bendito no campo. Bendito será o fruto do teu ventre, o fruto da
terra, a cria dos animais, do gado e das ovelhas. Bendito serás ao entrar e bendito
ao sair. O Senhor fará a bênção estar contigo nos celeiros e em todo o trabalho
de tuas mãos. E o Senhor teu Deus te abençoará na terra que te dá (Dt
28,1-4.6.8).
Conhecendo a fé de Maria, semeada, cultivada e amadurecida em belos frutos, podemos entender as reações e expressões de Jesus, narradas por Lucas, nos relatos da vida pública de Jesus. Longe de ser uma ofensa à mãe, as palavras de Jesus revelam o segredo de Maria. Seu principal mérito está em ser uma pessoa de fé, que acolhe a palavra de Deus e a concretiza. Ser mãe é uma consequência de sua fé e uma forma de ela realizar a vontade de Deus. Quando os familiares de Jesus vão procurá-lo e não conseguem alcançá-lo por causa da multidão, ele diz:
Minha
mãe e meus irmãos são estes aqui que ouvem a Palavra de
Deus e a põem em prática (Lc 8,21).
Outra vez, Jesus está
falando à multidão, quando uma mulher grita repentinamente: "Feliz o ventre que te trouxe e os seios que te amamentaram".
As imagens de "ventre e seios" aludem claramente à maternidade biológica.
Dentro da cultura judaica da época, a mãe deveria receber os méritos de ter um
filho tão importante. A frase de Jesus, na visão de Lucas, rompe o esquema de
privilégio familiar e destaca novamente que a importância de Maria vem, em
primeiro lugar, de sua fé ativa, ao escutar a palavra de Jesus e a transformá-la
em gesto.
Jesus respondeu: "Felizes,
sobretudo, são os que ouvem a Palavra de
Deus e a põem em prática" (Lc 11 ,27s).
Alguns séculos depois,
santo Agostinho dirá que Maria concebeu Jesus
primeiro no coração e depois no corpo. Antes de ser a sua mãe carnal,
acolheu-o pela fé. Sem a fé, de nada adiantaria ela ter-se tornado a mãe do Senhor.
Agostinho captou bem a mensagem do evangelista.
Resumidamente, qual é a
principal característica de Maria, segundo Lucas? Ela encarna com fé a Palavra
de Deus. Guarda-a no coração e a coloca em prática, dando muitos frutos. Esses
também são os traços básicos de todo o discípulo de Jesus.Pela sua fé, Maria é
o exemplo do cristão seguidor, e aprendiz do Senhor. Em Maria, a fé se traduz
em ser mãe, educadora e discípula de Jesus. Mas sua importância não reside, em
primeiro lugar, na maternidade. E, sim, na fé, compromisso radical e inteiro a
Deus e ao seu projeto.
Obrigado, Senhor, pois nos deste Maria como tua perfeita
discípula. Ensina-nos a escolher a tua palavra, na fé. Ajuda-nos a cultivar a
interioridade. Faze de nós “realizadores da Palavra”. Multiplica em nós as
sementes do Bem e os frutos do teu Reino. Amém.
Pe. Afonso
Murad
(Extraído do livro Maria,
Toda de Deus e tão Humana, pag. 33-41).
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