CARTA DE FREDERICO OZANAM
à
Em setembro de
1833 Frederico Ozanam, em gozo de férias, foi pela primeira vez, com seus pais e
irmãos, para a Itália. Visitou a península como viajante diligente e culto, mas, sobretudo com o coração já marcado pelo misticismo e com inspiração poética.
Estando em Florença, sua mãe, Maria Nantas, decidiu
ficar, com seu pequeno filho Carlos, hospedada na casa de uma sua irmã que ali
residia. Seu pai, João Antônio Ozanam, Frederico e seu irmão Afonso, foram para Loreto e
dali, até Roma e Nápoles.
Frederico Ozanam estava com 20 anos e essa
peregrinação por monumentos, ruínas, templos e tantas coisas do passado, despertaram e ampliaram nele sua vocação pelos estudos literários e históricos.
Sentiu intensa espiritualidade nas
Igrejas que visitaram, principalmente na igrejas dedicadas a Virgem Santíssima
e, especialmente em Loreto onde teve a oportunidade de ver e tocar na Santa
Casa de Nazaré, onde vivera Nossa Senhora, onde fora visitada pelo anjo Gabriel
e concebera o Senhor.
A casa, diz piedosa tradição, teria sido milagrosamente
transportada de Nazaré para Tersatz, na Dalmácia em 1291 e, daí para Loreto na Itália, em 1294. A
casa está dentro de uma majestosa basílica, uma das mais famosas e visitadas da
Itália. Foi nesse local, que Frederico Ozanam cumpriu a promessa feita
à seu amigo Dufieux, conforme relata na carta que lhe enviou de Roma, em 30 de
setembro de 1833.
Do "piedoso recinto" de Loreto, eis a prece que Frederico Ozanam recitou com a força da sua fé inabalável:
"Memorare", lembra, piedosa Virgem Maria, que nunca se ouviu falar de alguém que, tendo recorrido à sua proteção, tenha sido abandonado por Ti. Assim, eu também recorro a Ti, Virgem das virgens, com as lágrimas de pecador: "Mãe do Verbo, ouve a minha prece!"
A carta que segue não está
inserida no
epistolário de Ozanam (Lettres F. Oza-
nam - Ed. Blond et Gay).
Caro amigo,
Desde quando me permitiu assim chamá-lo, tive
poucos ensejos de expressar-lhe gratidão. Por ocasião da minha viagem para a
Itália, pediu-me, na sua benignidade, só duas provas de afeto: lembrá-lo na prece a Nossa Senhora de Loreto e uma carta de
Roma. Dessas promessas cumpri a primeira: ajoelhado na Casa Santa, onde se consumou o mistério de Deus
feito Homem, repeti para os amigos e particularmente em sua intenção a prece de agrado de Maria, aquele "Memorare" que lhe prometi e que brotou dos meus lábios frios e ineficazes, mas que, espero, tenha subido até a Deus, graças ao Santo Sacrifício que
se estava celebrando no altar e às fervorosas invocações dos inúmeros peregrinos ali congregados. Assim, alguma vez acontece que um pobre, infiltrando-se na multidão dos poderosos, consegue penetrar despercebido no palácio dos príncipes.
Tenho agora de manter a segunda promessa e também desta vez quero ser fiel ao encontro da amizade.
Para que serve, porém, uma carta chegada de tão longe se não lhe obtém outra coisa
que fazê-lo errar uma ou duas vezes mais na sua vida?
Se não lhe trouxer nada que consiga interessar-lhe e agradar-lhe? Julgue, entretanto, se for fácil recolhermos as próprias impressões, levando-as em conta, após percorrer durante um mês a mais bela metade da Itália, ou seja quase cento e cinquenta léguas semeadas de paisagens magníficas e
de numerosas cidades, cada uma das quais exigiria, sob um particular aspecto, visita demorada e minuciosa; quando sem nunca parar, sem retomar fôlego, precisa variar de espetáculo com admiração cada vez crescente; quando, após visitar uma cidade magnífica, não se encontra para meditar outro lugar senão um leito onde o sono nos
acomete irresistível,
ou um canto de carruagem onde o pó nos sufoca e o ruído nos atordoa.
Certamente, a culpa é também da minha pobre e fraca cabeça que, cansada de ver tantas grandes coisas ao mesmo tempo, acaba por se confundir e não mais
saber o que pensar ou dizer.
Não obstante,
pecaria eu de ingratidão a seu respeito se um mesquinho amor próprio me induzisse a silenciar; por isso, prefiro deixar a pena correr ao acaso, tantas tolices quantas dela possam sair.
As Nações, caro amigo, estão diante de Deus como os homens, a cada uma delas Ele deu um corpo feito de barro, ou seja um solo sobre o qual devem viver e usufruir o bem comum. Mas deu-lhes também uma alma, isto é, atitudes mais ou menos predispostas para uma ou outra espécie de desenvolvimento social. Teve a Itália o dom de um corpo glorioso, um solo fértil e belo em que a natureza prodigaliza toda a sua riqueza, reinando uma vegetação abundante, variada e sempre renovada. Nas planícies lombardas cresce e amadurece a messe duas vezes no curso do ano. Sobre as costas do Adriático as videiras penduram aos ramos dos olmos os seus cachos deliciosos; os cumes dos Apeninos são coroados de negros abetos e de carvalhos silvestres, as
regiões mais cálidas são ricas de louros e palmeiras de um verdor que não esmaece e não
conhece inverno.
Além disso tudo, deu a Providência à Itália uma alma ardente de profunda sensibilidade, pronta a
conceber o belo, hábil em realizá-lo. Tal caráter, ainda que à primeira vista possa parecer mudável ou bizarro, não a toma alheia a ideias de uma outra ordem e, mãe das belas-artes, conta também com mais
de um triunfo no campo científico.
Mas acima dessas primazias domina o sentimento religioso, sentimento a que os caluniadores chamam fanatismo. Entretanto, é ele que inspira ao povo um grande amor à Santíssima Virgem, leva inúmeros peregrinos aos santuários marianos. Em todos os lares há uma imagem da Virgem amadíssima, toda noite em sua honra são acesas milhares de lâmpadas, enquanto grupos de trabalhadores vão pelas ruas cantando louvores. É por isso que Deus coroou a Itália rainha das Nações cristãs e confiou-lhe o receptáculo da fé; é por isso que entre todas as cidades italianas, Roma ergue-se majestosa, elas acatam
a sua superioridade e lhe prestam homenagem devota.
Quanto a mim, confesso-o, tive diante dos olhos o Foro do antigo povo romano, contemplei de perto os mais belos monumentos do paganismo, os altares dos falsos deuses, os arcos de triunfo dos imperadores; tudo isso, porém, não me causou grande impressão, antes tive quase prazer ao ver os bois pastando ali onde Cicero declamava a parte final de seus discursos. E o que mais admirei no Coliseu, magnífico anfiteatro, obra colossal da antiguidade romana, foi a simples cruz de madeira que os Papas ergueram em memória
dos Mártires que derramaram o seu sangue.
Entusiasmei-me sobretudo por Roma católica, rica de tantas memórias, consagrada por tantas virtudes, ornada de tanta glória. Beijei respeitosamente as paredes da prisão de São Pedro, visitei o lugar onde foi erguida a sua cruz. Visitei mais de vinte igrejas construídas nos primeiros séculos do cristianismo, nas quais a arquitetura, as pinturas ingênuas, a forma simbólica, conservam a simplicidade dos dias antigos.
Visitei o Vaticano, o mais belo monumento elevado pela religião à arte, e a grande Basílica de São Pedro, o mais belo templo elevado pela arte à religião; um, encerra entre os seus muros, um museu e uma biblioteca sem iguais no mundo; os afrescos de Rafael e de Miguel Ângelo, as obras-primas dos maiores pintores; a outra, oferece o espetáculo de um edifício imenso, cuias proporções maravilhosas ocultam à primeira vista a sua grandeza gigantesca e proporciona ao peregrino que a visita, a alegria de um assombro sempre novo. Se lhe dissesse que esta Basílica, com quase 500 pés de altura, contém 300 estátuas colossais, quase todas obras-primas, 20 quadros em mosaico, que enganam a vista ao ponto de parecerem um original de Rafael, mármores e iluminuras inúmeras e inestimáveis, necessitando quase meia hora para visitá-la toda, chegando por arcadas de 300 colunas, coroadas pelas imagens dos Santos mais conhecidos, e teria apenas uma vaga ideia da sua beleza e grandiosidade. Precisaria o amigo vê-la e, de pé na vasta praça, ler sobre o pedestal do grande obelisco a inscrição que faz vibrar de orgulho um coração cristão:
Ecce
crux Domini
- fugite partes adversae- vicit
leo de tribu Juda.
(Eis aqui a cruz do Senhor - Fugí ó inimigos - Venceu o leão da tribo de Judá).
Caro amigo, nunca acabaria se quisesse e pudesse dizer-lhe tudo. Quan-
tas coisas teria ainda de contar? O acolhimento bondoso do Santo Padre, a emoção ao beijar os pés do santo ancião, ao encontrar-me, eu servo pobre e infiel, na presença do Vigário de Cristo; os traços de devoção de Sua Santidade, o Papa
atual, que me foram narrados; o amor que o povo de Roma e dos campos nutrem para com ele; a bela cerimônia do Consistório que presenciei, e outras coisas que me ficarão gravadas no coração até quando, reencontrando os amigos, as
poderei extravasar.
Eis que a carta acabou.
Pelo seu desalinho, as rasuras, a irregularidade da caligrafia, poderá
compreender que na qualidade de viajante não me sinto de todo à vontade.
Não me resta afinal senão abraça-lo e incumbi-lo de
lembrar-me afetuosamente aos rapazes Serre e a Eduardo Reverdi. Achei, também,
que a amizade que tem demonstrado ao meu caro companheiro de estudos Lallier, é
suficiente para autorizar-me a pedir-lhe o favor de postar, ao endereço dele, a
carta que junto à presente.
O seu devotado amigo
Antonio F. Ozanam
Nossa Senhora de Loreto
MEMORARE
Padre Antônio Tomaz
Lembrai-vos,
doce mãe, terna Maria,
Que
nunca foi por vós desamparado
Quem
vosso auxílio e maternal cuidado
Com
fé vos implorou como devia.
Nesta
esperança que me alenta e guia,
Venho
buscar, de culpas carregado,
Auxílio
e proteção contra o pecado
Em
vosso branco seio, ó Virgem pia.
De
quem tão confiado vos procura,
Dos
vossos meigos olhos protetores
Não
aparteis a luz benigna e pura.
Pois
essa luz de radiações serenas
Não
somente dissipa os meus temores
Mas
em gozo converte as minhas penas.